sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Manifesto do poeta M.G. enquanto feto

A dor é meu vício e minha arte é feita de sangue. Emolduro o suicídio como se fosse um ato sexual e lambo seus arrredores fazendo cara de quem vai engolir a tristeza e todas suas entrelinhas. Mas tudo o que cai do pedestal da auto-destruição são fracas e sóbrias lágrimas, nascidas de um puro egoísmo. O ritmo da minha dor é pontuado pela música, tal qual a tinta é espalhada pelos pincéis viris de um intor. Sempre soube que música demais, romantismo demais, choradeira demais não me poderiam mesmo fazer bem. Mas, como boa putinha cristã, estou de joelhos pra qualquer coisa que me faça sentir menor que eu mesmo. E sigo nesse fetichismo barato, nessa sugestão lânguida pelo brilho de um bêbado olhar, fingindo que sou muito autêntico em minhas emoções europeias. Tento negar a tradição do velho continente, sua dinastia de sentimentos falsos, sua estética risivelmente pobre, mas tudo que sou é a prostituta renegada que se sente culpada por ser o que é. Tento fugir, mas estou embaixo do pedestal do Deus totalitário, sinto a culpa que me obrigaram a mastigar, enquanto o sofrimento de um Senhor me escraviza do alto de sua cruz. Eu, escravo das emoções ocidentais, brincando de roleta russa, esperando eternamente por uma anunciação do próximo tiro, do próximo sangue, da próxima perda que nunca virá pois a arma é de brinquedo. E a alma também. O sofrimento brinca comigo, manipulando-me como se faz a uma marionete. Sou uma velha boneca de algodão velho, estuprada pela numeração romana dos séculos. Minha dor é tão antiga quanto o orgasmo que gerou o meu cárcere vital. Mas além de velha, minha dor também pode ser novíssima; então, me dou ao direito de doer. Me dou ao dever de doer, e de sangrar bem no meio da apatia coletiva dos tempos. Espalharei minha dor por aí, e vocês vão ter que engolir toda a dor que vocês inventaram, todas as toneladas de sangue divino e higienizado pelo Verbo que tudo criou. E prometo não ser tão gostoso quanto o vinho na taça. Pois não sou filho de meus pais, nem do seu Senhor. O que corre nas minhas veias é a própria humanidade. Sou filho de todos vocês, e meu grito será ouvido quando eu sair dessa placenta.

M.G.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

CONTO: Blecaute

A mulatto! an albino! a mosquito! my libido!
(K. Cobain)


Ela fechou os olhos.

Ah, me sinto bem melhor agora, pensou. E, atentando para todas as perturbações invisíveis do que considerava real, percebeu o quanto tudo parecia mais livre e prazeroso quando não julgava a realidade através da visão. Esta nunca lhe parecera muito confiável, pois imagens eram confusas e enganosas; e olhos, autoritários e ambiciosos em sua maioria. Costumava, em revolta contra a expressão porta da alma, chamar o olho de espelho falso da alma.

Preferia o escuro. Não pela falta de luz, mas pelo excesso de todo o resto – que não era luz. Quando descansava as pálpebras, intimamente adaptava-se a um mundo ausente de cores e formas espaciais. Percebia inúmeros elementos, movimentos, fragmentos que pertenciam a uma certa órbita universal. Não saberia explicar ao certo qual dos sentidos usava para perceber esses movimentos, mas gostava de pensar que sua organização era semelhante à da música. Os pedacinhos de universo obedeciam a uma lógica muito natural: colisões, reproduções, recombinações em infinitas estruturas possíveis. Tratava-se da música universal.

Seu maior prazer era apagar as luzes e perceber esse vasto universo dentro e fora de si. A tal música podia ser sentida no exato momento em que o universo – esse quebra-cabeça de átomos idênticos que se combinam em formas tão absurdamente diferentes – não era mais percebido através dos olhos, e sim engolido pelo mesmo escuro ao qual ela pertencia. Pois, com as luzes apagadas, não havia diferenças entre ela e o mundo. Tudo pertencia à mesma sinfonia.

De olhos fechados, sentia-se capaz de atingir um nirvana melódico. Gozava de intermináveis orgias sagradas entre ela e o universo. Era maestra e ouvinte dos sons, dos toques, dos cheiros, dos medos e desejos, ao passo que se misturava a todos eles. Seus sentidos percorriam e massageavam a existência, apalpando a superfície de seus fragmentos até amolecê-los em contato com a sua pele; e então desmanchava-se em contato com o que chamava de realidade. Estando dentro do universo e possuindo-o também dentro de si numa cumplicidade sem pudores, sentia-se verdadeiramente livre. Poderia conduzir o universo da maneira que quisesse, uma vez que já não se diferenciava dele.

Como sentia-se bem! Era uma liberdade tão artística! De fato, uma sensibilidade libidinosa que muitos condenariam em uma menina de boa família como ela. Sua criação jamais permitiria-lhe entrar em contato com um nível de consciência tão subversivo e perigoso aos olhos da tradição cristã. Por isso, escondia seu prazer dos olhos inquisidores do mundo. De olhos fechados, não havia voyeur que destruísse sua relação com o universo. E ela poderia ser então uma bruxa na Idade Média, e poderiam queimá-la em praça pública que ela pouco se importaria, pois de olhos fechados estava conectada a verdades maiores. De olhos fechados, não existe a luz das fogueiras.

Acreditava no universo, acima de tudo, e no escuro como porta de entrada para sua imensidão. E, quando passava horas a ouvir a música do universo e dela depreender melodias, harmonias e ritmos, sentia que não poderia ser a única que o fizesse: essa grandeza devia ser acessível aos outros seres humanos, se ela também fazia parte do universo assim como eles. Tudo estava interligado, e ela não admitia existirem hierarquias entre os seres humanos – apenas escuridões diferentes. Sim, todos deviam ter esse poder; só era preciso despertá-lo.

Tinha plena noção de seus poderes artísticos, mas não conseguia botá-los em prática. Era difícil traduzir a música universal em termos que todos pudessem entender, pois para isso precisava de olhos. Sabia que era capaz, mas algo a impedia de transformar suas percepções em arte, ficando estas restritas apenas às sensações no escuro. Era um ato bastante individual, que configurava uma individualidade bastante pacífica. Imaginava às vezes um mundo no escuro – a liberdade absoluta de pensamento que cada um alcançaria ao apagar suas luzes. A liberdade sem olhos, a liberdade sem cores.

Um subestimado poeta morto do século XX dizia, em uma das canções mais famosas da época, que "com as luzes apagadas é menos perigoso". Gostava bastante desse verso, e considerava seu autor um grande profeta da escuridão – termo que ela mesma inventara. Entendia que possivelmente as intenções do autor em escrever tal verso eram bem diferentes da interpretação livre que ela tomou, mas ainda assim o considerava um profeta incrível da escuridão. Tivera inclusive discípulos, que apesar de aparentemente não saber o que estavam fazendo, cantaram em uníssono seus poemas, ergueram seus braços ao compasso cego de suas canções e cuspiram seus versos na cara de velhos senhores que os incineraram com seus olhares apáticos.

A juventude – os jovens deveriam mudar, os jovens deveriam fechar os seus olhos assim como ela! Há muito tempo não surgia um artista que realmente entendesse das coisas e fugisse do autoritarismo imagético da nossa cultura. Esses jovens maestros do universo, que sabem perder-se nas entranhas de sua escuridão e a partir delas seguir o caminho que melhor entenderem, sempre foram julgados por homens de olhos bem abertos. Sendo considerados dementes e lunáticos em sua maioria, toda a melodia que tentavam reproduzir não passava de lixo para uma sociedade que, tão preocupada com a higienização do mundo através da imagem, acabou por fechar seus ouvidos a qualquer sinfonia que pudesse distorcer a realidade perfeita que demoraram tanto para desenhar. Olhos que organizam. Olhos que discriminam.

Sentiu em si o desequilíbrio na balança do que chamava de natureza, ou simplesmente justiça. Os jovens maestros, tão ironicamente iluminados através de suas vastas escuridões interiores, foram sempre considerados nada mais que fragmentos descartáveis de uma realidade que poderia oferecer paisagens muito mais bonitas que aquela. Os ditadores da representação visual jamais piscariam seus olhos enquanto pudessem ainda classificar e fragmentar o mundo segundo suas próprias ambições, inventando símbolos que deveriam ser reproduzidos, e explodindo com pupilas nucleares tudo aquilo que não seria conveniente aos interesses de seu império cultural. Olhos que ordenam. Olhos que mutilam.

Os meus iguais estão silenciosamente morrendo nas fogueiras, pensou. Nem sequer experimentam fechar os olhos, pois já são aniquilados muito antes de qualquer experiência. Olhos que indicam direções. Mas sabia que muitos ainda tinham o poder de apagar as próprias luzes e espalhar-se pela música universal. Se não sabiam, era simples questão de serem ensinados. Precisava ensiná-los. Enquanto houvesse pelo menos um corpo mexendo-se no compasso de suas cegas melodias, a música não existiria em vão. Precisava fazer alguma coisa.

O universo. Estava conectada demais com o universo agora. Nunca estivera tão escuro. Olhos fechadíssimos, ouviu o universo, sentiu o universo, segurou o universo inteiro com as mãos e por ele foi absorvida. Sentiu-se de repente muito sozinha. A verdade não tem olhos, pensou. A verdade não produz lágrimas. E, em meio às mais maravilhosas das melodias, o universo deu-lhe um destino, sugerindo-lhe uma ideia que explodiu como um big bang dentro do seu escurinho particular. Tornou-se, imediatamente, uma profetiza da escuridão.

E foi então que, com dois golpes ritmados, conduzindo uma nova sinfonia audível a todos os que se encontravam de olhos fechados naquele instante, ela furou seus próprios espelhos falsos d'alma e viveu para sempre na mais aconchegante e pacífica das escuridões, onde o sangue não tem cor.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

CONTO: Qualquer destinatário





I.


Tudo começou com uma pequena menina. Não me lembro direito do dia em que ela entrou em minha vida. É provável que eu seja esquizofrênico e que ela tenha sido uma amizade imaginária de infância que durou tempo demais; o fato é que não me lembro de um início, não me lembro de tê-la conhecido um dia. Tratou-se muito mais de um processo natural do que uma ruptura no curso dos acontecimentos: ela sempre esteve por perto. É mais nova que eu, uns quatro ou cinco anos. No começo, seus olhos implodiam em inocência, seus movimentos eram escassos e sua boca parecia esboçar verdades absolutas que nunca eram pronunciadas. Possuía um encantamento misterioso que preenchia minha atmosfera, meu pedacinho de mundo. Quando fecho os olhos e penso nela, azul é a cor que enxergo. Essa é a cor que vivi com ela: azul, mas um azul diferente, um azul tão triste, como se pertencesse a um arco-íris de um conto de fadas corrompido, como se fosse o azul-bebê de uma criança que nunca nasceu. Arrisquei definir: azul-aborto. Imagem que carrego desde que comecei a desenvolver minhas inclinações poéticas.

Nenhuma palavra nunca foi trocada entre nós. Jamais comentei sua existência com as outras pessoas, pois sabia que elas me considerariam maluco; e algo dentro da minha intuição me dizia que a menina era importante apenas para mim, e que os outros nunca compreenderiam sua existência. Também nunca toquei nenhuma parte de seu corpo. Nossa ligação era apenas imagética: o azul do mundo à nossa volta era triste apenas para os olhos, sem ouvidos, mãos ou bocas envolvidos. Revezávamos com maestria nossa relação de objeto e observador – perfeitamente recíprocos um ao outro. Outro tipo de convívio não me parecia possível e, mesmo que o fosse, minha intuição sempre me disse que era melhor ter certeza antes de arriscar qualquer outro tipo de relação. Sempre fui assim, cauteloso demais, beirando a covardia. Um enorme receio de me aproximar dos outros; principalmente dela. Não que ela me oferecesse tanto perigo, mas não costumo quebrar o silêncio quando não tenho certeza do que vou falar. Tínhamos que nos observar mais, antes de tudo. Silêncio é coisa muito sagrada. E as palavras, perigosíssimas.


II.

Quando adolescente, fui o mais típico deles. Nunca fui muito extrovertido, mas tive minha época de grandes amizades, porres inesquecíveis, aventuras bizarras, amores platônicos e aparentemente eternos; enfim, uma adolescência normal. Nessa época a pequena menina esteve menos presente, ou talvez eu não tivesse mesmo dado muita atenção a ela. Precisava viver a minha vida. Ela que vivesse a sua e fosse feliz. Eu o seria do meu jeito, e já tinha coisas demais pra me preocupar. No entanto, é preciso que o caminho para a felicidade é complicado e apresenta certos obstáculos naturais. Diversos fatos aconteceram e muitos pensamentos ruins tomaram conta da minha cabeça, na chegada da juventude. Parecia ser depressão, ou crise dos vinte. Estava quase no fim da faculdade, a responsabilidade caindo sobre os ombros e as milhões de desilusões pesando como cruz nas costas. Fechado, sempre muito fechado: não queria compartilhar, não queria ajuda, não queria conselhos. Dizia pra mim mesmo que conseguiria lidar com tudo sozinho. Ninguém merecia se preocupar com minhas crises, e de qualquer modo ninguém as entenderia. Cada qual no seu canto. E em cada canto... já sabem. Não coloco inteiro, não quero que minhas citações pareçam plágio. Sou muito cauteloso, como já disse. É melhor que me encarem como um escritor moderno e bem-humorado que faz referências sugestivas, do que um simples citador de fases famosas. Ou pior: um pseudo-autor de frases de senso comum.

Digressões à parte: ao passo que a idade adulta ganhava mais peso, a menina voltou a estar presente. Passei a observá-la melhor. Estava maior, ganhava corpo, dimensões, novas expressões e esboços de uma personalidade completamente própria, sempre muito fiel ao nosso pacto não-verbal de silêncio absoluto. E era tão estranha, tão misteriosa. Parecia uma adolescente completamente crescida, que tornava-se atraente e repulsiva ao mesmo tempo. Seus lábios eram tristes, mas docemente magnéticos. E seguem-se todos as paradoxos referentes a ela que eu poderia enumerar em milhões de páginas, se eu dispusesse de tempo para fazê-lo.


III.

Iniciou-se um período muito solitário da minha vida. Só me relacionava com as pessoas quando saía para ir à faculdade. Lá assistia aulas, conversava com antigos colegas e ouvia todas as histórias e fofocas que tinham para me contar. Quando perguntavam de mim, o que estava fazendo, como estava me sentindo, eu dizia que estava bem e sorria de leve. Mas aquela tímida perturbação dos lábios mais era um esboço de um antigo sorriso que uma vez julgaram bonito e radiante, do que um sorriso espontâneo. Constantemente fazia rascunhos de mim mesmo: tentativas de réplicas de um passado de sentimentos bons e grandes amizades. Esboçava um “eu” perdido a todo momento. Não poderia mostrar o “eu” de agora. O “eu” de agora sequer existia. Não seria justo com meus amigos mostrar o tanto que me distanciei de mim mesmo – ninguém era capaz de suportar tanta degradação. Passei então a mimetizar meu próprio espírito, como um ator de um monólogo individual já enterrado pela História.

E o azul, o eterno azul, o azul-aborto a espremer suas cordas vocais até rasgá-las, mas em vão: nenhum som nunca era produzido. Gritos religiosamente silenciosos a diluir-se entre as lacunas do meu mundo, que anoitecia para sempre. Caiu a noite dentro de mim, com muita neblina entre eu e o meu eu, que eu tentava desesperadamente ressuscitar nem que fosse só nas aparências. Mas o meu eu não estava apenas morto; ele nunca nascera. Nunca saíra, vivo, de dentro de mim. Tudo esteve dentro de mim a todo tempo, infértil e inexpressivo. Sinto dores. Atravessando a superfície da pele, eu sinto o azul-aborto que antes eu alcançava apenas com olhos ingênuos e poéticos. Minha carne já não é a mesma. De repente, o que era poesia tornou-se dor física, e nada mais foi tão belo quanto um dia conseguira ser. Comecei a colher o que plantara e sangrar minhas mãos nos mesmos frutos que um dia pareceram inofensivos: um camponês se envenenando com as colheitas do seu próprio chão.


IV.

Passei por um período de muita isolação social. Minhas visitas à faculdade tornaram-se cada vez mais raras, ignorava ligações de amigos e sempre inventava milhões de desculpas para não ver ninguém. Não fazia nem questão de fingir algo: simplesmente me isolei. Amigos e família, me escondi de todos. Da minha família eu morava longe, pois fazia faculdade fora da minha cidade natal. Meus pais pagavam o aluguel de um apartamento e ainda mandavam dinheiro extra para minhas outras despesas. Não era lá muito rico, mas dava pra me sustentar bem: o mínimo de comida necessária para a sobrevivência – pois não era muito dado aos prazeres da gula –, e o resto eu gastava com álcool, cigarros e livros. Agradecia internamente os meus pais por patrocinarem minhas loucuras, mas não conseguia ser grato a ponto de demonstrar algum afeto por eles. A verdade é que o amor é um sentimento puramente literário; além dos amores platônicos, eu não posso dizer com certeza se realmente já amei alguém.


V.

E lá estava ela, a menina, em todos os meus momentos de loucura e de doença, observando-me com seus olhos grandes e famintos. Atraía tudo para si; nada parecia fugir de seu magnetismo. Com olhos que mais pareciam gargantas, ela engolia insaciavelmente tudo que estava ao seu redor. Eu não conseguia mais fugir, nem viver sozinho. Ou seja, eu também a atraía para dentro de mim, e então nos envolvíamos com laços que amarrávamos mecanicamente sem nem perceber a força dos nós. Nenhum sentimento bom daí saía, e minhas dores emocionais cresciam numa velocidade desenfreada. E, à medida que os sentimentos e as conclusões acerca da vida tornavam-se piores, mais demoníaca a menina parecia. Sempre observando, sempre observando. Olhos vermelhos inquisidores. Não era mais uma pequena menina. Era a gênese de um monstro. Matá-la não era má ideia. Mas como mataria um ser humano? Eu não seria capaz de matá-la sem morrer logo depois. Bom, ela pode muito bem ser fruto de imaginação, mas como saber? Coragem de encostar-lhe na pele eu não tinha, e já éramos cúmplices do silêncio.

Às vezes eu tinha momentos bem lúcidos, nos quais eu queria fugir dela. Não porque eu estivesse bem longe dela, mas porque minha sobriedade era sempre acompanhada de um grande sentimento de culpa em relação ao mundo; longe de mim ela estaria tão melhor, intocável, segura etc. Possuía um certo senso de responsabilidade que, certo ou não, me dizia que o melhor para a garota é que ficasse longe de mim. Não sou flor que se cheira, e se ela tem essa aparência demoníaca hoje em dia, o único culpado sou eu. Sabia disso muito bem. Não queria influenciar, quem quer que fosse, com qualquer tipo de pensamento que viesse de dentro da minha cabeça transtornada. Só que, por mais que eu entendesse como inadequada a presença dela ali, algo como uma condescendência silenciosa me impedia de questioná-la e afastá-la. Dentro de mim uma voz dizia que ela tinha suas razões para estar ali, e que agora ela era grande demais para que eu tivesse o direito de julgá-la. Se ela estava ali, ela tinha seus motivos. E cada um no mundo sabe de si. Eu mesmo compreendia que meus motivos eram apenas meus e que todos têm direto à individualidade. Cada um toma conta de seu próprio universo. Ainda que, inevitavelmente, o universo dela fosse o mesmo que o meu.


VI.

Mas os poucos momentos lúcidos passaram a ser mais raros. Cada vez mais desesperado eu me debatia com aquela loucura que sempre esteve próxima mas eu nunca me dera conta. E a menina sempre acompanhando os meus movimentos, assistindo enquanto eu vomitava lágrimas de angústia e engatinhava por chãos imundos, tentando me manter longe de mim mesmo. Passei a não me reconhecer mais por entre as rachaduras dos espelhos. Queria morrer. Pensava em nós dois, em mim, no azul, chegando a milhares de conclusões doentias que fazem sentido quando você está perturbado. Não consigo nem descrevê-las, pois a todo momento elas são substituídas por teorias renovadas saídas de um cérebro muito fértil em negatividade. Não sei mais, nunca saberei. Se as palavras geram coisas perigosíssimas, imagine você o que o silêncio não é capaz de criar. Já faz tempo demais que estamos mudos, eu e a menina. Penso que daqui não temos mais saída.


VII.

Toda essa merda, minha vida sem sentido, o álcool barato que entra em minhas veias, minha poesia idiota que não leva a lugar nenhum, o futuro pelo qual nem compensa lutar, minha família que não vale um centavo, os amores platônicos que enterrei dentro de mim, o mundo insano que gira ao meu redor; tudo têm se misturado em explosões nas minhas retinas. Os elementos combinam-se tantas vezes quanto é permitido, oferecendo-me todo o tipo de sonhos e delírios. Eu sei muito bem que estou louco, e é justamente isso que me aprisiona mais à loucura. 


VIII.


Minha consciência é um cárcere.


IX.

Estou doente, muito doente. Nenhum órgão do meu corpo está especialmente prejudicado, mas a dor da existência engatinha como um bebê de unhas grandes e afiadas sobre minhas entranhas. Por dias e dias me arrasto de um cômodo pro outro do meu apartamento me entupindo de pílulas, poesias ruins, comidas industrializadas, bebidas vagabundas. Às vezes digo bem alto que se trata do mal do século, ainda que eu esteja em pleno século XXI e essas maldições não configurem nada mais que afetação literária de minha parte. Pelo menos ainda tenho um senso de humor sobrevivente, que dá seus últimos suspiros em meio a essa correnteza infértil de angústia. Afinal, por mais que tudo seja angústia e desespero, há um prazer mórbido em me sentir perdido em relação ao mundo. Algum prazer a gente sempre inventa, na alegria ou na dor; não? Esse, aliás, parece ser o grande talento da classe média, com suas vaidades e seu hedonismo: nós manipulamos o que é bom e o que é ruim, segundo nossos próprios desejos ou medos. E não é bom inventar? A vida me parece também uma forma de arte, mas com menos sentido.


X.

A menina está sempre me olhando, sentada na cabeceira da cama enquanto escrevo. Observa toda a minha loucura com um sorriso austero: “eu sabia que isso ia acontecer; eu quero que isso aconteça”, ela não me diz mas de certa forma eu sei. Seu silêncio e seu frio me deixam tão maluco.  Em cada mísero segundo, em cada centímetro do apartamento, em cada dor da minha alma: ela está lá. Bem viva. E nítida. Já pensei matá-la, esquartejá-la, mas senti que ela estaria sempre presente. Estivemos sempre juntos, por que haveria de ser diferente se ela morresse? Se ela morrer, eu morro junto; ela faz parte da minha existência, sempre fez. Coisas que a gente sabe, mas não consegue explicar. Sei é que o problema está em mim, e até meu último suspiro de vida eu conseguirei enxergá-la - o que, confesso, não deve passar de uns dez minutos daqui para adiante.

Sim, morrerei. Já vivi demais, e minha decisão é calma e sincera. Não tenho motivos para seguir vivo. É o fim. Nada mais clichê para artista perturbado.




XI.


É a minha renúncia: morro, e levo a menina junto comigo. Nós, nosso cárcere silencioso, nossa criminosidade cúmplice, nossa existência singular e dispensável. Peço, apenas, que o caixão seja azul. Leia com cuidado as metáforas sinestésicas que usei para definir o tom de azul e tente adaptá-los da maneira mais fiel possível, ainda que minhas descrições tenham sido literárias e abstratas. Por favor: é muito importante que meu caixão seja azul-aborto.


XII.

Estou escrevendo isso meio às pressas. Já não tenho disposição para me expressar em grande estilo, mas não posso deixar que a minha vida termine nos próximos minutos sem uma documentação literária do que me levou a esse fim. Dentro das gavetas dessa escrivaninha se encontram os meus poemas, os meus contos, as minhas teses, as cartas que eu nunca mandei e todo o tipo de escritos. Espero que eu seja lido e compreendido. Dentro de alguns minutos eu deixarei de existir, porque precisei. Comigo se vão as dores e a consciência; limpa ou suja. Mas espero que minha existência não desapareça completamente da História, e que eu fique vivo pelo menos em um ou dois leitores dessa narrativa. Leia-me: escreva-me.


XIII.

Lembre-se sempre que eu fui o único a ver a menina, minha doce e faminta menina, minha transparente e silenciosa menina. Ela não precisou de fato existir para fazer diferença no mundo. Ela me influenciou, existindo fisicamente ou não. E assim também quero proceder: permita-me que eu seja a sua menina azulada, o seu aborto fantasmagórico. Quero mostrar-lhe o azul. Decifra-me, ou:


domingo, 18 de julho de 2010

A arte de escrever um texto descompromissado sobre si mesmo em 5 minutos e publicar num blog como se fosse o máximo

Abro os olhos. Estava quase morrendo. Perseguição tremenda, meus amigos estavam no meio - que amigos? Tinha algo com minha mãe também. E carros; nunca consegui dirigir carros direito em sonhos. Fogem ao meu controle como água que passa pelos dedos. Só consigo controlar carros nos sonhos dos outros. Um amigo meu um dia sonhou, também era uma perseguição e eu era um ótimo motorista, excelente nas manobras. Coisa estranha. Olho pro lado e lá está meu rosto, olhando pra mim mesmo com cara de sono. Que susto! tô dormindo ainda? Ah, é meu espelho de corpo inteiro que fica ali do lado da cama sempre, gosto de me olhar quando acordo. Sinto-me bonito, não sei. A gente quando acorda é lindo. Eu e os outros. As pessoas são maravilhosas quando acabaram de sair de um bom sono. Sei que ninguém concorda comigo, as pessoas costumam se sentir amassadas demais ou o quê. Bobagem. Coisa linda de se ver. No amor, a coisa mais deliciosa é acordar junto. Dormir é fácil, mas acordar junto exige muita afinidade e é uma cena bonita para os olhos. Massageia as minhas córneas, ai córneas, tenho aflição de córneas. Imagina um transplante de córneas? Deve doer, mas pensando bem: melhor do que ficar cego. Visão é coisa que não dá pra ficar sem. Imagens. No fundo tudo é imagem, empírica ou não. Enfim, enfim, adoro acordar, gostaria de fotografar pessoas despertando. Fazer um grande álbum e mostrar pra todo mundo, seria ridículo mas tudo que é ridículo na pós-modernidade acaba sendo genial, um bando de idiotas babando ovo e oooh, que grande conceito! Desconstrução, subversão - qualquer coisa se torna isso. Só manipular a própria interpretação. Mas o que eu tinha sonhado mesmo? Tinha uns amigos, uma mulher... era minha mãe? Porra, é sempre assim. Maldita cabeça que não pára, tic-toc-tic-toc, esqueço todos os meus sonhos. Vou fazer um diário de sonhos. Dizem que é bom, mas também sempre digo que vou fazer e não faço nada. Tô com fome. Vou levantar. Já esqueci o sonho mesmo, e meu rosto no espelho já começa a tomar formas mais normais. Não estou mais tão bonito. Mas será o rosto ou será minha visão? Talvez minha visão é que seja mais sensível a belezas quando acordo. Mente vazia, percepção maior. Adoro esvaziar a mente, preciso voltar a meditar. Pseudo-meditar, nem sei mais. Nos tempos de hoje nada mais é o que parece se a gente reparar bem de perto. Problema é que eu sempre digo que vou fazer algo e nunca faço - anotar sonho, meditar... Resoluções estão sempre aí, procrastinando nossas frustrações. Como se fosse mudar um dia, né. Tô há 21 anos nessa, será que tem conserto? Ai, a fome tá doendo. Mas o que eu tinha sonhado mesmo? As lembranças parecem fumaça na minha cabeça agora, não faço ideia, tá sumindosumindo. Tinha a ver com carros, mas não lembro o quê. Esqueci mesmo a porra do sonho. Que vida previsível! Melhor sair da cama.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Quero

Quero seu perigo de chamas invisíveis. Desejo nele pular, a ele me entregar, e com ele me envolver. Por fora e pelo avesso. Quero sua corrupção desamparada, a solidão do seu destino. Para que no meio de tantas veias, teias, e fios, eu sobreviva - engatinhando de olhos vendados e arranhando as entranhas da sua escuridão. Nem me importo com a falta de luz, desde que as portas estejam abertas. Quero entrar em você, quero te invadir pelas costas, quero abrir as cortinas do seu palco dissimulado, quero cortar as cordas que te penduram ao mundo. Quero descobrir cada pedacinho frágil, cada parte escondida e com tudo isso quero me deliciar em riso - pela felicidade, pela ironia, ou pela maldade, que seja. Eu quero.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

E você, sem Deus?


No caminho de casa para o trabalho, em plena turbulência e confusão do transporte público metropolitano, fui desrespeitado violentamente por algum seguidor de Deus, que esfregou Seu poder em minha cara e mostrou-me que eu nada sou sem sua Graça Eterna (ou qualquer uma dessas expressões religiosas das quais não tenho muito conhecimento). A ofensa foi feita através de um adesivo pregado na traseira de um carro, cuja inscrição dizia:

"Deus sem você ainda é Deus. E você sem Deus?"

Respeito muito o fato dos seguidores de Deus não serem nada sem Ele. Sou defensor de liberdades individuais. Asseguraria, caso pudesse, o direito deles serem maquiavélicos. No caso, duplamente maquiavélicos, e ainda tocados pela Santidade: afinal, se os fins justificam os meios, seu Deus domina esse processo pelas duas pontas. Ele é tanto o fim, quanto o começo de tudo. Ou seja, tanto o Alfa quanto o Ômega que habitam em Deus são eficientes justificativas para os meios utilizados pelos crentes em Sua palavra.

Mas essa fé, essa coisa toda enorme e sublime, é, de qualquer maneira, uma escolha. Consciente ou não, social ou não, imposta ou não, inevitável ou não: escolha. Foram eles quem escolheram sua própria invalidez humana e o pouquíssimo controle da própria vida ao louvar uma entidade cuja existência só se prova em manuscritos que - pasmem! - foram escritos por seres humanos. Admiro a Força Divina e a coragem que ela instaura dentro de corações tão fracos que precisam de uma esperança metafísica para seguirem em paz. É coisa muito bonita e poética.

A Bíblia é ótimo documento histórico e um válido registro literário, também. Acreditar cegamente em tudo que ela diz é um direito que todos têm. Longe de mim desrespeitar esse tipo de liberdade. Mas que não venham me dizer que eu não sou nada sem seu Deus, só porque eles não são. A escolha, a fé, o problema, são todos deles. Por que julgam terceiros por causa disso? Isso não é amar ao próximo acima de todas as coisas. Isso é imposição ideológica. Posso não ser lá grande coisa na vida, mas sou alguma coisa. E para essa alguma coisa existir, juro que não precisei acreditar em nenhuma figura autoritária enferrujada que vive no céu e domina toda a minha vida.

Quem diz isso nunca estará próximo nem de Deus, nem de si mesmo. Se Deus ainda é Deus sem eles, quem perdeu foi eles. É a palavra deles que estabelece a existência de um Deus. Eles foram quem criaram esse Senhor, à sua imagem e semelhança. Não tenho nada a ver se com isso (juro por deus!) eles se tornaram fracos ou o quê.

Respondendo a pergunta: eu, sem Deus, ainda sou eu. Vejo-me do mesmo jeito, sinto-me do mesmo jeito, vivo do mesmo jeito. Estou ótimo assim. Existo sem Deus. Sem conflitos. Então repito a pergunta, caro religioso:

"E você sem Deus?"

Deixe-me adivinhar a resposta... Hum. Você não é nada sem Deus. Certo? Então o nada é você, colega; não eu. Simples assim, natural assim. Lide com isso e seja feliz.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

POEMA: Êxodus

Sabedoria wikipediática drive-thru,
enterre pra sempre meus gregos homens alucinados.
Já és meu alfa e meu ômega.

Da carne não necessito mais degustar o sangue.
Tentação é sede, e água é pecado mortal.
O leite materno é nojento e ejaculamos em vão.

Quero uma vacina contra as bactérias do sono,
um antídoto para o cansaço das pernas mutiladas.
O supercérebro divino não pode parar!

Desintegro-me em zilhões de k-bites vida afora,
e o mundo agora é uma grande orgia sinfônica
de homens-poeira que tudo sabem e tudo podem.

Nossas cadeias de silício são inodoras e indolores.
Melhores que o Senhor, somos mais que o carbono:
somos o sapiens do sapiens do Homo.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

CONTO: Multidão em mim

Há uma multidão que grita dentro de mim. O problema é que não consigo ouvi-la direito, pois apertei há alguns anos o botão de "mudo" do meu próprio televisor cerebral e os botões do controle remoto aparentemente estão todos quebrados agora. Não consigo retornar a um volume antigo nem alcançar um volume novo, de modo que não posso ouvir o que falam. Só é possível enxergá-los, encarar seus enormes buracos negros que substituem os olhos e suas minúsculas bocas a se contorcer em dolorosas expressões de angústia.

Geralmente são mais silenciosos durante o dia.

Da hora que acordo até a hora que o Sol se põe, eles me olham de maneira séria, mas calma. Os abismos dos olhos são menores e às vezes consigo identificar algum contorno das pupilas, como se os olhos fizessem algum esforço para saltar pra fora dos buracos negros. Ao passo que tenho mais compreensão a respeito deles, eles parecem me compreender mais também. Sabem que meu controle remoto está quebrado e que não consigo me levantar para chegar até a tela. Sabem que eu quero ouvi-los e sabem que não consigo. Tento então ouvir as vozes da minha intuição. Para estas, não preciso do televisor - o que é um alívio. Deixo aflorar a intuição, do núcleo de mim para dentro do eu. Sinto cheiro de expectativas - eles estão me observando e esperam que eu faça alguma coisa. Acreditam em mim. Essa fé me toca, mas me deixa cada vez mais confuso: não sei o que querem que eu faça. Passam o dia todo a me vigiar.

Durante a noite, o clima é de julgamento.

Todos me olham, gritando coisas e apontando o dedo para mim, mas há um deles que se destaca do resto. Sua cor é de um castanho anoitecido, seus contornos possuem uma luz amarela ofuscante e sua aura teria gosto de liderança caso eu pudesse degustá-la. Apresenta-se aos outros fazendo movimentos harmônicos e precisos com a mão. Depois de muitas noites, percebi que se tratava de um maestro. Não entendo dessas coisas, mas quando tento sentir seus movimentos, ouço dentro do meu cérebro cada vibração da música que ele impõe aos outros. É uma melodia imponente, explosiva, oscilante, entorpecedora - mas a multidão que me observa não possui instrumentos para executar o que o regente pede. Eles sequer prestam atenção. Desconhecem a música. Não enxergam o maestro. Seus olhos esburacados o atravessam como se ele não existisse, e caem em cima de mim. Sou fuzilado pelos seus abismos negros e pelos seus berros surdos. Tenho medo do escuro que há neles. Quero inverter a cena toda: deixar o maestro de frente pra mim e fazer com que a multidão fique de costas. Quero tocar aquela música. Quero me aproximar daquele maestro, sinto que ele é a resposta para minhas dúvidas. Sinto que nos olhos dele posso encontrar tudo o que falta para completar aquela sinfonia. Pois ela está dentro de mim, assim como a multidão barulhenta que não consigo ouvir.

Tento alcançar o maestro, tento chamá-lo, mas não consigo me mover. Não consigo gritar. Não me sinto mais capaz. Quero chorar, mas não há lágrimas. Quero voar, mas não há asas. O desespero é tão grande que acaba se tornando pequeno. Com, ele já sei lidar. Já não escuto a multidão, então fecho meus olhos de dentro e tento não enxergá-la também. Até que dá certo: uns contornos ainda aparecem, mas consigo me fechar parcialmente na ilusão de que estou sozinho dentro de mim.

Só me resta o sono. Nele acabo caindo, e por horas me desligo de toda aquela bagunça. Quando acordo, eles aparecem de novo...

E, geralmente, são mais silenciosos durante o dia.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Minha nova religião

Nunca acreditei verdadeiramente na figura divina como ela é representada pela maioria das crenças. Um velho sábio criador de todas as coisas: de quem tudo veio, para quem tudo irá, quem tudo pode e quem em todos os lugares está. Durante os últimos anos, aqueles da juventude, com suas naturais porém árduas definições de caráter, de gosto e de objetivos, neguei sempre que pude a figura de Deus, embrenhando-me numa espécie de ateísmo que a mim pareceu bem justo – seja no sentido racional, no químico, físico ou geográfico.

Mas apesar de não acreditar nessa concepção de Deus, percebi que acredito, sim, num impulso criador de tudo que existe agora. Não me parece cabível um universo infinito que sempre existiu; e, considerando impossível a possibilidade do universo sempre ter existido, automaticamente creio na hipótese de que ele teve um começo. Se ele teve um começo, acredito que algo tenha acontecido para impulsionar a sua existência.

Sempre chamei esse impulso de Big Bang, obviamente. O Big Bang, até onde eu sei, é um evento, mas ele não pode ter acontecido sozinho. Nada pode acontecer, segundo o que acredito em se falando de existência, sem estar submetido ao tempo, a uma causa anterior. E a infinita regressão de causas anteriores termina no começo do que acredito ser o universo. Esse começo é um tipo de energia, afinal tudo é energia. Alguns chamam de Deus – pra mim não é, é apenas uma energia. É apenas matéria.

Não acredito nem que essa “força” criadora conviva conosco. Não consigo senti-la. Vejo tudo no mundo e no universo como uma sucessão infinita de reações a essa ação inicial, como se tudo que existe fosse apenas um reflexo. Como se a eternidade que concebemos estivesse dentro de uma eternidade diferente: aquela que existe entre um milésimo de segundo e outro milésimo de segundo.

Acredito que somos consequência da explosão dessa força inicial. O Big Bang foi a explosão de um Deus – porque não achei palavra melhor –, que ao criar todo o universo que existe acabou se destruindo também. Não acho que tenha sido um Deus racional e essa tivesse sido a intenção dele, o que basta é: esse Deus está morto. Ele existiu e não existe mais.

Ou seja: somos pedacinhos cósmicos de um Deus esquartejado

Isso não é lindo?

Sei que minha teoria é cheia de achismos e não faz sentido algum. Mas, num mundo de pseudo-crenças alternativas e sincretismos no qual as pessoas dizem o que querem, acreditam convenientemente no que bem entendem e têm suas próprias concepções absurdas de Deus, eu também mereço ter a minha teoria!



terça-feira, 20 de abril de 2010

Kill your idols

(...) de fora da própria literatura, a linguística acaba de fornecer à destruição do Autor um instrumento analítico precioso, ao mostrar que a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição, sem precisar ser preenchido pela pessoa dos interlocutores; linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, tal como eu não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um «sujeito», não uma «pessoa» (...)

(...) assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. É por isso que é irrisório ouvir condenar a nova escrita em nome de um humanismo que se faz hipocritamente passar por campeio dos direitos do leitor. O leitor, a critica clássica nunca dele se ocupou; para ela, não há na literatura qualquer outro homem para além daquele que escreve. (...)

(...) sabemos que, para devolver à escrita o seu dever, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.

BARTHES, Roland. “A morte do autor”.

Peço desculpas publicamente por ter ignorado nosso amigo Roland Barthes por tanto tempo, ainda que esse pedido não seja uma vergonha cega à frente de algo que de repente percebi como verdade absoluta, ainda que esse pedido não tenha um destinatário preciso (e enunciatário, teria?), ainda que eu não conheça tão bem assim os motivos pelos quais peço desculpas.

Por vezes, cometi o defeito lamentável de me considerar mais autor do que, de fato, um escritor. Dotado do maior egocentrismo que posso compreender – e grato a esse mesmo egocentrismo, que, caso ausente de mim, não me possibilitaria chegar a essa conclusão –, encarava meu suposto ofício como um dom, como um poder. Como se eu fosse um Deus criando a realidade, e não um manipulador desse gigante mosaico de recortes lingüísticos da realidade que é a nossa linguagem. Como se a obra existisse dentro de mim. Como se as obras não precisassem de um olhar externo para serem concretizadas como obra.

Entendi repentinamente o que sinto quando meus escritos ficam entalados dentro de mim – e, em consequência, compreendi também o alívio que sinto quando consigo me expressar em palavras. Tenho dentro de mim diversas escritas que só podem se materializar se eu de fato as escrever: não adianta mais seguir vendo-me como um autor onipotente que, no entanto, nada produz. Esse autor não existe. Como pude ter sido tão imbecil?

Talvez seja euforia juvenil, mas quero declarar a morte desse autor. Junto com Barthes. Junto comigo mesmo. Junto a um Eu completamente ofuscado por ilusões românticas que Hegel explicaria bem – mas Hegel entra pra lista de assuntos pra outra hora.

Declaro suicídio. Começa a partir de hoje. 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Gelado domingo quente

Uns amigos me convidaram para ver a exposição do Andy Warhol nesse último fim de semana. Adoro a arte do cara e obviamente aceitei o convite, aproveitando-o também como uma oportunidade de dar um passeio pela cidade na qual eu moro e da qual eu tenho visto apenas aspectos como a poluição sonora, visual e material. Poderia ser uma ótima reconciliação minha com São Paulo e nosso amor que estava em hiatus nos últimos meses. Enfim, amor ou não, reconciliação ou não, personificação clichê ou não, é fato que eu precisava sair da bolha em que tenho me encontrado nos últimos tempos – pela qual desloco-me apenas do trabalho para a faculdade e da faculdade para casa – e dar uma voltinha pela metrópole.

Acabamos não indo ao Andy, pois saímos tarde demais de casa e a exposição fechava às 17h. Fomos então para a Avenida Paulista, afinal já tínhamos nos arrumado para sair e estávamos no meio do caminho quando descobrimos que a exposição fechava às 17h – voltar para casa seria um fracasso miserável. Chegando à avenida, percebi com “olhos embotados de cimento e lágrima” o quanto aquilo tudo fazia falta para mim. Falta da grandeza da avenida, de sentir toda aquela globalização asfaltada, a atmosfera entupida de riquezas e criatividade arquitetônica.

Era um domingo à noite e fazia uns 15 °C, então o clima era de passeio, cafés e roupas elegantes de inverno. Pela calçada, os transeuntes dominicais andando de cá pra lá quase ofuscavam a visão dos automóveis. Estes, frenéticos como sempre, retalhavam o ar com suas luzes, fumaças e barulhos em meio ao cinza-noite da avenida, acelerando sem piedade enquanto os pedestres aguardavam, condescendentes, o sinalzinho verde para poderem atravessar a rua.

Em frente ao Center 3, dois artistas de rua se apresentavam, atraindo e embasbacando uma multidão cuja primeira reação seria a de autodefesa desconfiada. Diferente do que os outros aparentam, adoro arte de rua. Sinto-me filosoficamente agredido por seus artistas. Uma agressão dolorida e prazerosa, como se eles atirassem em mim com munições de ilusões, esperanças, utopias e assumissem belamente o peso e a culpa de ser gauche na vida – dos quais sou apenas uma tentativa inútil e atordoada de teórico, pensativo demais para colocar ideologias em prática.

Enfim, a apresentação deles foi um espetáculo à parte. Um dos caras, certamente dono do diafragma mais desenvolvido dos nossos tempos, tocava uma espécie de berrante gigantesco em um ritmo profano e misterioso, enquanto o outro brincava com bolas de cristal, equilibrando-as ao longo do corpo de uma maneira quase sobrenatural e fazendo parecer que as bolas flutuavam magicamente. Um ilusionismo cênico que, misturado à música e à concentração visível no rosto e no corpo do moço, dava à cena algum tom obscuro e transcendental de sexualidade. Aquilo me assustava. Fascinava. Excitava.

Enfim, no Center 3, banalidades agradáveis: conversas com amigos, uma roasted potato e um chá preto awake no Starbucks. Este me deixou especialmente acordado por algumas horas, contrariando minhas expectativas (“sou forte para cafeína, imagina que um chazinho vai me deixar acordado!”) e fazendo com que meu interesse por chás, há muito adormecido, voltasse à tona em um só ímpeto. Anyway, meu interesse por chás e o vício recém-adquiridos por eles é assunto para outra hora.

Depois fomos à Livraria Cultura e por fim paramos para tomar uma cerveja no Charme da Paulista. Em frente ao Charme, um cara tocava violão e cantava, bem alto, músicas do Capital Inicial, Legião Urbana e uns sertanejos que me lembro de ter ouvido eventualmente durante os dezoito anos que vivi no interior. Essa coisa de barzinho-e-música-ao-vivo é coisa que talvez me incomodasse em momentos normais, mas não me incomodou naquele. Nem um pouco. Tudo estava interessante, repaginado, e dentro de mim eu revisitava lugares velhos e os reformava de maneira espetacular. O frio aumentava ao passo que minha alma esquentava – tudo estava confortável, gostoso, prazeroso. Mais e mais.

Não é a primeira vez que relato sentimentos bons ligados à Avenida Paulista, né? Devo mesmo ter alguma relação com esse lugar, talvez por ter sido o primeiro lugar em São Paulo que eu pisei quando viajei pra cá pela primeira vez, completamente sozinho. Lembro que era uma manhã (7h, ou algo assim) chuvosa e gelada – mas isso também é assunto pra outra hora.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Onirismo

Quando criança, a primeira inclinação profissional que me ocorreu foi a de me tornar jornalista um dia. Por incrível que pareça, essa vontade surgiu das noites em família nas quais assistíamos ao Jornal Nacional, esperando pela novela que viria logo depois. Admirava, com a ingenuidade de uma criança de seis anos, a expressão austera e imparcial de William Bonner ao pronunciar seu "boa noite" para o país todo. Mas o que eu gostava mais, de fato, eram as roupas que o jornalista usava - ternos bonitos, pura expressão masculina de elegância.

Minha mãe achava graça e alimentava meus sonhos. Quando estávamos passeando no shopping e passávamos por alguma vitrine de roupas sociais, por exemplo, eu e ela conversávamos sobre qual terno eu usaria quando fosse apresentador do telejornal. Apesar de ter consciência de que essa "brincadeirinha de ser jornalista" era um sonho que poderia não ser levado adiante, eu levava a brincadeira a sério e analisava todos os ternos da vitrine com o pouco de senso estético que possuía, até escolher um que fosse mais adequado, mais elegante. De preferência melhor que o do William Bonner, para que eu fosse mais bonito, mais famoso, mais importante ainda. Afinal, se eu queria substituir William Bonner na Rede Globo, precisaria escolher uma roupa que me deixasse mais apresentável. E essa escolha não podia ser deixada para depois - o sonho é o agora.

Outra coisa que me fez almejar a profissão foi Clark Kent, o Superhomem. Era natural que uma criança nos anos 90 o admirasse e a ele quisesse ser igual; seja pelos poderes, pela fama ou até pela bela Louis Lane. Eu, particularmente, queria ser Clark Kent porque ele era jornalista. Claro que não me importaria em ter seus superpoderes - aliás, a capacidade de sair voando por aí é uma coisa que sempre me fascinou bastante -, mas o que eu queria mesmo era sua profissão: aquele dia a dia corrido dentro da redação, matérias sendo feitas, milhares de computadores. Era um mundo mágico para mim.

Às vezes eu pegava uma caixa de sapato, abria e fingia que era meu notebook. No meu imaginário, eu estava lá, dentro da redação, digitando na velocidade exorbitante com a qual Clark Kent digitava graças aos seus poderes. Ele era uma figura masculina forte, inteligente e invejável, com seus óculos enormes e seu olhar clínico. Lembro-me de quando fui ao oftalmologista e ele disse que eu teria que usar óculos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida - usar óculos era um dos meus sonhos, afinal, intelectuais e jornalistas geralmente usam. Clark Kent usava. Saí do consultório radiante em direção à ótica, mal esperando o dia em que poderia colocar meus óculos no rosto. Não me importava com um possível bullying - apelidos como Quatro-Olhos, por exemplo -, porque dentro de mim estava tudo bem, tudo decididamente no seu lugar. E eu seria um belo homem: grande, sábio, inteligente, culto, bonito, admirado.

Muitas outras figuras, fictícias ou não, influenciaram no meu desejo de me tornar um jornalista; diversos personagens de livros, novelas e filmes. Não consigo nomeá-los porque sinceramente não me lembro. Pois, apesar de terem influenciado, meu pensamento já estava maduro e pensava na profissão de maneira cada vez mais racional, mais objetivada, sem a fantasia infantil do terno de William Bonner e os óculos de Clark Kent. Consigo lembrar, com um pouco mais clareza, de professores de redação que me incentivavam a seguir esse caminho: "Samuel, você escreve muito bem!", "Samuel, você já pensou em ser jornalista?", "Samuel, só não te dou um 11 porque a nota máxima é 10." Tudo isso me deixava muito feliz, mas às vezes preocupado comigo mesmo e com meu futuro.

Certa vez, na sétima série, uma professora de redação me deu uma bronca. Ela me perguntou o que eu queria ser no futuro e eu disse sem pensar nem por dois segundos: "jornalista". Então ela me disse que eu ia acabar desperdiçando meu próprio sonho, pois apesar de extremamente talentoso, eu era muito preguiçoso, muito vagabundo e relapso nos estudos. E que, se eu continuasse dessa maneira, ia acabar me dando mal.

Aquelas palavras me fizeram refletir por bastante tempo. Tinha perfeita consciência de que jogava fora todos os meus talentos, voluntariamente ou não - aliás, isso é uma coisa que sempre fiz. Rasgo os meus desenhos, jogo meus escritos no lixo, abandono cursos que poderiam me ensinar um monte de coisas, boicoto minhas próprias possibilidades de realização pessoal. Tentei me esforçar um pouco mais a partir de então, mas tenho que ser sincero: não me importava muito com o que iria acontecer. Meu temperamento se baseava no desencanamento quanto ao futuro. O sonho é muito mais prazeroso, a fantasia é muito mais inspiradora, o imaginário é muito mais fértil que perspectivas racionais acerca do futuro. Isso, para mim, é ser criança: um mundo gigante de sensações e pensamentos pela frente, livre de pressupostos lógicos e racionais.

O tempo passou e não virei jornalista. Adquiri outros conhecimentos, li outros livros, tive outras vontades, desenvolvi outras ideias, prestei outros vestibulares, cresci. Não realizei meu sonho, mas de que importa? O sonho é simplesmente o sonho, e não a realização do sonho. "Sonhos sonhos são", como diz o título da canção do Buarque de Hollanda. Você não precisa manter, a respeito dos seus sonhos, uma expectativa que possa te levar à frustração no futuro. Uma das coisas mais tristes que um ser humano pode fazer é confundir sonho com objetivo. Minha professora estava certa quanto ao possível desperdício da minha capacidade, mas ela estava terrivelmente equivocada no que diz respeito ao desperdício do sonho.

Penso que, mesmo com o peso da maturidade e suas consequentes responsabilidades, nós não deveríamos parar de sonhar. Mantenhamos um pouco da criança em nós. Tenhamos de vez em quando nossas ideias absurdas, surreais - e por que não reais?

Sou:

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São Paulo, SP, Brazil
I'm your lover, I'm your zero - I'm the face in your dreams of glass.