quinta-feira, 1 de abril de 2010

Onirismo

Quando criança, a primeira inclinação profissional que me ocorreu foi a de me tornar jornalista um dia. Por incrível que pareça, essa vontade surgiu das noites em família nas quais assistíamos ao Jornal Nacional, esperando pela novela que viria logo depois. Admirava, com a ingenuidade de uma criança de seis anos, a expressão austera e imparcial de William Bonner ao pronunciar seu "boa noite" para o país todo. Mas o que eu gostava mais, de fato, eram as roupas que o jornalista usava - ternos bonitos, pura expressão masculina de elegância.

Minha mãe achava graça e alimentava meus sonhos. Quando estávamos passeando no shopping e passávamos por alguma vitrine de roupas sociais, por exemplo, eu e ela conversávamos sobre qual terno eu usaria quando fosse apresentador do telejornal. Apesar de ter consciência de que essa "brincadeirinha de ser jornalista" era um sonho que poderia não ser levado adiante, eu levava a brincadeira a sério e analisava todos os ternos da vitrine com o pouco de senso estético que possuía, até escolher um que fosse mais adequado, mais elegante. De preferência melhor que o do William Bonner, para que eu fosse mais bonito, mais famoso, mais importante ainda. Afinal, se eu queria substituir William Bonner na Rede Globo, precisaria escolher uma roupa que me deixasse mais apresentável. E essa escolha não podia ser deixada para depois - o sonho é o agora.

Outra coisa que me fez almejar a profissão foi Clark Kent, o Superhomem. Era natural que uma criança nos anos 90 o admirasse e a ele quisesse ser igual; seja pelos poderes, pela fama ou até pela bela Louis Lane. Eu, particularmente, queria ser Clark Kent porque ele era jornalista. Claro que não me importaria em ter seus superpoderes - aliás, a capacidade de sair voando por aí é uma coisa que sempre me fascinou bastante -, mas o que eu queria mesmo era sua profissão: aquele dia a dia corrido dentro da redação, matérias sendo feitas, milhares de computadores. Era um mundo mágico para mim.

Às vezes eu pegava uma caixa de sapato, abria e fingia que era meu notebook. No meu imaginário, eu estava lá, dentro da redação, digitando na velocidade exorbitante com a qual Clark Kent digitava graças aos seus poderes. Ele era uma figura masculina forte, inteligente e invejável, com seus óculos enormes e seu olhar clínico. Lembro-me de quando fui ao oftalmologista e ele disse que eu teria que usar óculos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida - usar óculos era um dos meus sonhos, afinal, intelectuais e jornalistas geralmente usam. Clark Kent usava. Saí do consultório radiante em direção à ótica, mal esperando o dia em que poderia colocar meus óculos no rosto. Não me importava com um possível bullying - apelidos como Quatro-Olhos, por exemplo -, porque dentro de mim estava tudo bem, tudo decididamente no seu lugar. E eu seria um belo homem: grande, sábio, inteligente, culto, bonito, admirado.

Muitas outras figuras, fictícias ou não, influenciaram no meu desejo de me tornar um jornalista; diversos personagens de livros, novelas e filmes. Não consigo nomeá-los porque sinceramente não me lembro. Pois, apesar de terem influenciado, meu pensamento já estava maduro e pensava na profissão de maneira cada vez mais racional, mais objetivada, sem a fantasia infantil do terno de William Bonner e os óculos de Clark Kent. Consigo lembrar, com um pouco mais clareza, de professores de redação que me incentivavam a seguir esse caminho: "Samuel, você escreve muito bem!", "Samuel, você já pensou em ser jornalista?", "Samuel, só não te dou um 11 porque a nota máxima é 10." Tudo isso me deixava muito feliz, mas às vezes preocupado comigo mesmo e com meu futuro.

Certa vez, na sétima série, uma professora de redação me deu uma bronca. Ela me perguntou o que eu queria ser no futuro e eu disse sem pensar nem por dois segundos: "jornalista". Então ela me disse que eu ia acabar desperdiçando meu próprio sonho, pois apesar de extremamente talentoso, eu era muito preguiçoso, muito vagabundo e relapso nos estudos. E que, se eu continuasse dessa maneira, ia acabar me dando mal.

Aquelas palavras me fizeram refletir por bastante tempo. Tinha perfeita consciência de que jogava fora todos os meus talentos, voluntariamente ou não - aliás, isso é uma coisa que sempre fiz. Rasgo os meus desenhos, jogo meus escritos no lixo, abandono cursos que poderiam me ensinar um monte de coisas, boicoto minhas próprias possibilidades de realização pessoal. Tentei me esforçar um pouco mais a partir de então, mas tenho que ser sincero: não me importava muito com o que iria acontecer. Meu temperamento se baseava no desencanamento quanto ao futuro. O sonho é muito mais prazeroso, a fantasia é muito mais inspiradora, o imaginário é muito mais fértil que perspectivas racionais acerca do futuro. Isso, para mim, é ser criança: um mundo gigante de sensações e pensamentos pela frente, livre de pressupostos lógicos e racionais.

O tempo passou e não virei jornalista. Adquiri outros conhecimentos, li outros livros, tive outras vontades, desenvolvi outras ideias, prestei outros vestibulares, cresci. Não realizei meu sonho, mas de que importa? O sonho é simplesmente o sonho, e não a realização do sonho. "Sonhos sonhos são", como diz o título da canção do Buarque de Hollanda. Você não precisa manter, a respeito dos seus sonhos, uma expectativa que possa te levar à frustração no futuro. Uma das coisas mais tristes que um ser humano pode fazer é confundir sonho com objetivo. Minha professora estava certa quanto ao possível desperdício da minha capacidade, mas ela estava terrivelmente equivocada no que diz respeito ao desperdício do sonho.

Penso que, mesmo com o peso da maturidade e suas consequentes responsabilidades, nós não deveríamos parar de sonhar. Mantenhamos um pouco da criança em nós. Tenhamos de vez em quando nossas ideias absurdas, surreais - e por que não reais?

Um comentário:

Paulo disse...

*bate palma* "Como você escreve bem, Samuel!" xD

achei lindo mas não me relaciono. não sei o que é sonhar desse jeito... triste, né?

Sou:

Minha foto
São Paulo, SP, Brazil
I'm your lover, I'm your zero - I'm the face in your dreams of glass.