quarta-feira, 10 de novembro de 2010

CONTO: Blecaute

A mulatto! an albino! a mosquito! my libido!
(K. Cobain)


Ela fechou os olhos.

Ah, me sinto bem melhor agora, pensou. E, atentando para todas as perturbações invisíveis do que considerava real, percebeu o quanto tudo parecia mais livre e prazeroso quando não julgava a realidade através da visão. Esta nunca lhe parecera muito confiável, pois imagens eram confusas e enganosas; e olhos, autoritários e ambiciosos em sua maioria. Costumava, em revolta contra a expressão porta da alma, chamar o olho de espelho falso da alma.

Preferia o escuro. Não pela falta de luz, mas pelo excesso de todo o resto – que não era luz. Quando descansava as pálpebras, intimamente adaptava-se a um mundo ausente de cores e formas espaciais. Percebia inúmeros elementos, movimentos, fragmentos que pertenciam a uma certa órbita universal. Não saberia explicar ao certo qual dos sentidos usava para perceber esses movimentos, mas gostava de pensar que sua organização era semelhante à da música. Os pedacinhos de universo obedeciam a uma lógica muito natural: colisões, reproduções, recombinações em infinitas estruturas possíveis. Tratava-se da música universal.

Seu maior prazer era apagar as luzes e perceber esse vasto universo dentro e fora de si. A tal música podia ser sentida no exato momento em que o universo – esse quebra-cabeça de átomos idênticos que se combinam em formas tão absurdamente diferentes – não era mais percebido através dos olhos, e sim engolido pelo mesmo escuro ao qual ela pertencia. Pois, com as luzes apagadas, não havia diferenças entre ela e o mundo. Tudo pertencia à mesma sinfonia.

De olhos fechados, sentia-se capaz de atingir um nirvana melódico. Gozava de intermináveis orgias sagradas entre ela e o universo. Era maestra e ouvinte dos sons, dos toques, dos cheiros, dos medos e desejos, ao passo que se misturava a todos eles. Seus sentidos percorriam e massageavam a existência, apalpando a superfície de seus fragmentos até amolecê-los em contato com a sua pele; e então desmanchava-se em contato com o que chamava de realidade. Estando dentro do universo e possuindo-o também dentro de si numa cumplicidade sem pudores, sentia-se verdadeiramente livre. Poderia conduzir o universo da maneira que quisesse, uma vez que já não se diferenciava dele.

Como sentia-se bem! Era uma liberdade tão artística! De fato, uma sensibilidade libidinosa que muitos condenariam em uma menina de boa família como ela. Sua criação jamais permitiria-lhe entrar em contato com um nível de consciência tão subversivo e perigoso aos olhos da tradição cristã. Por isso, escondia seu prazer dos olhos inquisidores do mundo. De olhos fechados, não havia voyeur que destruísse sua relação com o universo. E ela poderia ser então uma bruxa na Idade Média, e poderiam queimá-la em praça pública que ela pouco se importaria, pois de olhos fechados estava conectada a verdades maiores. De olhos fechados, não existe a luz das fogueiras.

Acreditava no universo, acima de tudo, e no escuro como porta de entrada para sua imensidão. E, quando passava horas a ouvir a música do universo e dela depreender melodias, harmonias e ritmos, sentia que não poderia ser a única que o fizesse: essa grandeza devia ser acessível aos outros seres humanos, se ela também fazia parte do universo assim como eles. Tudo estava interligado, e ela não admitia existirem hierarquias entre os seres humanos – apenas escuridões diferentes. Sim, todos deviam ter esse poder; só era preciso despertá-lo.

Tinha plena noção de seus poderes artísticos, mas não conseguia botá-los em prática. Era difícil traduzir a música universal em termos que todos pudessem entender, pois para isso precisava de olhos. Sabia que era capaz, mas algo a impedia de transformar suas percepções em arte, ficando estas restritas apenas às sensações no escuro. Era um ato bastante individual, que configurava uma individualidade bastante pacífica. Imaginava às vezes um mundo no escuro – a liberdade absoluta de pensamento que cada um alcançaria ao apagar suas luzes. A liberdade sem olhos, a liberdade sem cores.

Um subestimado poeta morto do século XX dizia, em uma das canções mais famosas da época, que "com as luzes apagadas é menos perigoso". Gostava bastante desse verso, e considerava seu autor um grande profeta da escuridão – termo que ela mesma inventara. Entendia que possivelmente as intenções do autor em escrever tal verso eram bem diferentes da interpretação livre que ela tomou, mas ainda assim o considerava um profeta incrível da escuridão. Tivera inclusive discípulos, que apesar de aparentemente não saber o que estavam fazendo, cantaram em uníssono seus poemas, ergueram seus braços ao compasso cego de suas canções e cuspiram seus versos na cara de velhos senhores que os incineraram com seus olhares apáticos.

A juventude – os jovens deveriam mudar, os jovens deveriam fechar os seus olhos assim como ela! Há muito tempo não surgia um artista que realmente entendesse das coisas e fugisse do autoritarismo imagético da nossa cultura. Esses jovens maestros do universo, que sabem perder-se nas entranhas de sua escuridão e a partir delas seguir o caminho que melhor entenderem, sempre foram julgados por homens de olhos bem abertos. Sendo considerados dementes e lunáticos em sua maioria, toda a melodia que tentavam reproduzir não passava de lixo para uma sociedade que, tão preocupada com a higienização do mundo através da imagem, acabou por fechar seus ouvidos a qualquer sinfonia que pudesse distorcer a realidade perfeita que demoraram tanto para desenhar. Olhos que organizam. Olhos que discriminam.

Sentiu em si o desequilíbrio na balança do que chamava de natureza, ou simplesmente justiça. Os jovens maestros, tão ironicamente iluminados através de suas vastas escuridões interiores, foram sempre considerados nada mais que fragmentos descartáveis de uma realidade que poderia oferecer paisagens muito mais bonitas que aquela. Os ditadores da representação visual jamais piscariam seus olhos enquanto pudessem ainda classificar e fragmentar o mundo segundo suas próprias ambições, inventando símbolos que deveriam ser reproduzidos, e explodindo com pupilas nucleares tudo aquilo que não seria conveniente aos interesses de seu império cultural. Olhos que ordenam. Olhos que mutilam.

Os meus iguais estão silenciosamente morrendo nas fogueiras, pensou. Nem sequer experimentam fechar os olhos, pois já são aniquilados muito antes de qualquer experiência. Olhos que indicam direções. Mas sabia que muitos ainda tinham o poder de apagar as próprias luzes e espalhar-se pela música universal. Se não sabiam, era simples questão de serem ensinados. Precisava ensiná-los. Enquanto houvesse pelo menos um corpo mexendo-se no compasso de suas cegas melodias, a música não existiria em vão. Precisava fazer alguma coisa.

O universo. Estava conectada demais com o universo agora. Nunca estivera tão escuro. Olhos fechadíssimos, ouviu o universo, sentiu o universo, segurou o universo inteiro com as mãos e por ele foi absorvida. Sentiu-se de repente muito sozinha. A verdade não tem olhos, pensou. A verdade não produz lágrimas. E, em meio às mais maravilhosas das melodias, o universo deu-lhe um destino, sugerindo-lhe uma ideia que explodiu como um big bang dentro do seu escurinho particular. Tornou-se, imediatamente, uma profetiza da escuridão.

E foi então que, com dois golpes ritmados, conduzindo uma nova sinfonia audível a todos os que se encontravam de olhos fechados naquele instante, ela furou seus próprios espelhos falsos d'alma e viveu para sempre na mais aconchegante e pacífica das escuridões, onde o sangue não tem cor.

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I'm your lover, I'm your zero - I'm the face in your dreams of glass.