sexta-feira, 1 de outubro de 2010

CONTO: Qualquer destinatário





I.


Tudo começou com uma pequena menina. Não me lembro direito do dia em que ela entrou em minha vida. É provável que eu seja esquizofrênico e que ela tenha sido uma amizade imaginária de infância que durou tempo demais; o fato é que não me lembro de um início, não me lembro de tê-la conhecido um dia. Tratou-se muito mais de um processo natural do que uma ruptura no curso dos acontecimentos: ela sempre esteve por perto. É mais nova que eu, uns quatro ou cinco anos. No começo, seus olhos implodiam em inocência, seus movimentos eram escassos e sua boca parecia esboçar verdades absolutas que nunca eram pronunciadas. Possuía um encantamento misterioso que preenchia minha atmosfera, meu pedacinho de mundo. Quando fecho os olhos e penso nela, azul é a cor que enxergo. Essa é a cor que vivi com ela: azul, mas um azul diferente, um azul tão triste, como se pertencesse a um arco-íris de um conto de fadas corrompido, como se fosse o azul-bebê de uma criança que nunca nasceu. Arrisquei definir: azul-aborto. Imagem que carrego desde que comecei a desenvolver minhas inclinações poéticas.

Nenhuma palavra nunca foi trocada entre nós. Jamais comentei sua existência com as outras pessoas, pois sabia que elas me considerariam maluco; e algo dentro da minha intuição me dizia que a menina era importante apenas para mim, e que os outros nunca compreenderiam sua existência. Também nunca toquei nenhuma parte de seu corpo. Nossa ligação era apenas imagética: o azul do mundo à nossa volta era triste apenas para os olhos, sem ouvidos, mãos ou bocas envolvidos. Revezávamos com maestria nossa relação de objeto e observador – perfeitamente recíprocos um ao outro. Outro tipo de convívio não me parecia possível e, mesmo que o fosse, minha intuição sempre me disse que era melhor ter certeza antes de arriscar qualquer outro tipo de relação. Sempre fui assim, cauteloso demais, beirando a covardia. Um enorme receio de me aproximar dos outros; principalmente dela. Não que ela me oferecesse tanto perigo, mas não costumo quebrar o silêncio quando não tenho certeza do que vou falar. Tínhamos que nos observar mais, antes de tudo. Silêncio é coisa muito sagrada. E as palavras, perigosíssimas.


II.

Quando adolescente, fui o mais típico deles. Nunca fui muito extrovertido, mas tive minha época de grandes amizades, porres inesquecíveis, aventuras bizarras, amores platônicos e aparentemente eternos; enfim, uma adolescência normal. Nessa época a pequena menina esteve menos presente, ou talvez eu não tivesse mesmo dado muita atenção a ela. Precisava viver a minha vida. Ela que vivesse a sua e fosse feliz. Eu o seria do meu jeito, e já tinha coisas demais pra me preocupar. No entanto, é preciso que o caminho para a felicidade é complicado e apresenta certos obstáculos naturais. Diversos fatos aconteceram e muitos pensamentos ruins tomaram conta da minha cabeça, na chegada da juventude. Parecia ser depressão, ou crise dos vinte. Estava quase no fim da faculdade, a responsabilidade caindo sobre os ombros e as milhões de desilusões pesando como cruz nas costas. Fechado, sempre muito fechado: não queria compartilhar, não queria ajuda, não queria conselhos. Dizia pra mim mesmo que conseguiria lidar com tudo sozinho. Ninguém merecia se preocupar com minhas crises, e de qualquer modo ninguém as entenderia. Cada qual no seu canto. E em cada canto... já sabem. Não coloco inteiro, não quero que minhas citações pareçam plágio. Sou muito cauteloso, como já disse. É melhor que me encarem como um escritor moderno e bem-humorado que faz referências sugestivas, do que um simples citador de fases famosas. Ou pior: um pseudo-autor de frases de senso comum.

Digressões à parte: ao passo que a idade adulta ganhava mais peso, a menina voltou a estar presente. Passei a observá-la melhor. Estava maior, ganhava corpo, dimensões, novas expressões e esboços de uma personalidade completamente própria, sempre muito fiel ao nosso pacto não-verbal de silêncio absoluto. E era tão estranha, tão misteriosa. Parecia uma adolescente completamente crescida, que tornava-se atraente e repulsiva ao mesmo tempo. Seus lábios eram tristes, mas docemente magnéticos. E seguem-se todos as paradoxos referentes a ela que eu poderia enumerar em milhões de páginas, se eu dispusesse de tempo para fazê-lo.


III.

Iniciou-se um período muito solitário da minha vida. Só me relacionava com as pessoas quando saía para ir à faculdade. Lá assistia aulas, conversava com antigos colegas e ouvia todas as histórias e fofocas que tinham para me contar. Quando perguntavam de mim, o que estava fazendo, como estava me sentindo, eu dizia que estava bem e sorria de leve. Mas aquela tímida perturbação dos lábios mais era um esboço de um antigo sorriso que uma vez julgaram bonito e radiante, do que um sorriso espontâneo. Constantemente fazia rascunhos de mim mesmo: tentativas de réplicas de um passado de sentimentos bons e grandes amizades. Esboçava um “eu” perdido a todo momento. Não poderia mostrar o “eu” de agora. O “eu” de agora sequer existia. Não seria justo com meus amigos mostrar o tanto que me distanciei de mim mesmo – ninguém era capaz de suportar tanta degradação. Passei então a mimetizar meu próprio espírito, como um ator de um monólogo individual já enterrado pela História.

E o azul, o eterno azul, o azul-aborto a espremer suas cordas vocais até rasgá-las, mas em vão: nenhum som nunca era produzido. Gritos religiosamente silenciosos a diluir-se entre as lacunas do meu mundo, que anoitecia para sempre. Caiu a noite dentro de mim, com muita neblina entre eu e o meu eu, que eu tentava desesperadamente ressuscitar nem que fosse só nas aparências. Mas o meu eu não estava apenas morto; ele nunca nascera. Nunca saíra, vivo, de dentro de mim. Tudo esteve dentro de mim a todo tempo, infértil e inexpressivo. Sinto dores. Atravessando a superfície da pele, eu sinto o azul-aborto que antes eu alcançava apenas com olhos ingênuos e poéticos. Minha carne já não é a mesma. De repente, o que era poesia tornou-se dor física, e nada mais foi tão belo quanto um dia conseguira ser. Comecei a colher o que plantara e sangrar minhas mãos nos mesmos frutos que um dia pareceram inofensivos: um camponês se envenenando com as colheitas do seu próprio chão.


IV.

Passei por um período de muita isolação social. Minhas visitas à faculdade tornaram-se cada vez mais raras, ignorava ligações de amigos e sempre inventava milhões de desculpas para não ver ninguém. Não fazia nem questão de fingir algo: simplesmente me isolei. Amigos e família, me escondi de todos. Da minha família eu morava longe, pois fazia faculdade fora da minha cidade natal. Meus pais pagavam o aluguel de um apartamento e ainda mandavam dinheiro extra para minhas outras despesas. Não era lá muito rico, mas dava pra me sustentar bem: o mínimo de comida necessária para a sobrevivência – pois não era muito dado aos prazeres da gula –, e o resto eu gastava com álcool, cigarros e livros. Agradecia internamente os meus pais por patrocinarem minhas loucuras, mas não conseguia ser grato a ponto de demonstrar algum afeto por eles. A verdade é que o amor é um sentimento puramente literário; além dos amores platônicos, eu não posso dizer com certeza se realmente já amei alguém.


V.

E lá estava ela, a menina, em todos os meus momentos de loucura e de doença, observando-me com seus olhos grandes e famintos. Atraía tudo para si; nada parecia fugir de seu magnetismo. Com olhos que mais pareciam gargantas, ela engolia insaciavelmente tudo que estava ao seu redor. Eu não conseguia mais fugir, nem viver sozinho. Ou seja, eu também a atraía para dentro de mim, e então nos envolvíamos com laços que amarrávamos mecanicamente sem nem perceber a força dos nós. Nenhum sentimento bom daí saía, e minhas dores emocionais cresciam numa velocidade desenfreada. E, à medida que os sentimentos e as conclusões acerca da vida tornavam-se piores, mais demoníaca a menina parecia. Sempre observando, sempre observando. Olhos vermelhos inquisidores. Não era mais uma pequena menina. Era a gênese de um monstro. Matá-la não era má ideia. Mas como mataria um ser humano? Eu não seria capaz de matá-la sem morrer logo depois. Bom, ela pode muito bem ser fruto de imaginação, mas como saber? Coragem de encostar-lhe na pele eu não tinha, e já éramos cúmplices do silêncio.

Às vezes eu tinha momentos bem lúcidos, nos quais eu queria fugir dela. Não porque eu estivesse bem longe dela, mas porque minha sobriedade era sempre acompanhada de um grande sentimento de culpa em relação ao mundo; longe de mim ela estaria tão melhor, intocável, segura etc. Possuía um certo senso de responsabilidade que, certo ou não, me dizia que o melhor para a garota é que ficasse longe de mim. Não sou flor que se cheira, e se ela tem essa aparência demoníaca hoje em dia, o único culpado sou eu. Sabia disso muito bem. Não queria influenciar, quem quer que fosse, com qualquer tipo de pensamento que viesse de dentro da minha cabeça transtornada. Só que, por mais que eu entendesse como inadequada a presença dela ali, algo como uma condescendência silenciosa me impedia de questioná-la e afastá-la. Dentro de mim uma voz dizia que ela tinha suas razões para estar ali, e que agora ela era grande demais para que eu tivesse o direito de julgá-la. Se ela estava ali, ela tinha seus motivos. E cada um no mundo sabe de si. Eu mesmo compreendia que meus motivos eram apenas meus e que todos têm direto à individualidade. Cada um toma conta de seu próprio universo. Ainda que, inevitavelmente, o universo dela fosse o mesmo que o meu.


VI.

Mas os poucos momentos lúcidos passaram a ser mais raros. Cada vez mais desesperado eu me debatia com aquela loucura que sempre esteve próxima mas eu nunca me dera conta. E a menina sempre acompanhando os meus movimentos, assistindo enquanto eu vomitava lágrimas de angústia e engatinhava por chãos imundos, tentando me manter longe de mim mesmo. Passei a não me reconhecer mais por entre as rachaduras dos espelhos. Queria morrer. Pensava em nós dois, em mim, no azul, chegando a milhares de conclusões doentias que fazem sentido quando você está perturbado. Não consigo nem descrevê-las, pois a todo momento elas são substituídas por teorias renovadas saídas de um cérebro muito fértil em negatividade. Não sei mais, nunca saberei. Se as palavras geram coisas perigosíssimas, imagine você o que o silêncio não é capaz de criar. Já faz tempo demais que estamos mudos, eu e a menina. Penso que daqui não temos mais saída.


VII.

Toda essa merda, minha vida sem sentido, o álcool barato que entra em minhas veias, minha poesia idiota que não leva a lugar nenhum, o futuro pelo qual nem compensa lutar, minha família que não vale um centavo, os amores platônicos que enterrei dentro de mim, o mundo insano que gira ao meu redor; tudo têm se misturado em explosões nas minhas retinas. Os elementos combinam-se tantas vezes quanto é permitido, oferecendo-me todo o tipo de sonhos e delírios. Eu sei muito bem que estou louco, e é justamente isso que me aprisiona mais à loucura. 


VIII.


Minha consciência é um cárcere.


IX.

Estou doente, muito doente. Nenhum órgão do meu corpo está especialmente prejudicado, mas a dor da existência engatinha como um bebê de unhas grandes e afiadas sobre minhas entranhas. Por dias e dias me arrasto de um cômodo pro outro do meu apartamento me entupindo de pílulas, poesias ruins, comidas industrializadas, bebidas vagabundas. Às vezes digo bem alto que se trata do mal do século, ainda que eu esteja em pleno século XXI e essas maldições não configurem nada mais que afetação literária de minha parte. Pelo menos ainda tenho um senso de humor sobrevivente, que dá seus últimos suspiros em meio a essa correnteza infértil de angústia. Afinal, por mais que tudo seja angústia e desespero, há um prazer mórbido em me sentir perdido em relação ao mundo. Algum prazer a gente sempre inventa, na alegria ou na dor; não? Esse, aliás, parece ser o grande talento da classe média, com suas vaidades e seu hedonismo: nós manipulamos o que é bom e o que é ruim, segundo nossos próprios desejos ou medos. E não é bom inventar? A vida me parece também uma forma de arte, mas com menos sentido.


X.

A menina está sempre me olhando, sentada na cabeceira da cama enquanto escrevo. Observa toda a minha loucura com um sorriso austero: “eu sabia que isso ia acontecer; eu quero que isso aconteça”, ela não me diz mas de certa forma eu sei. Seu silêncio e seu frio me deixam tão maluco.  Em cada mísero segundo, em cada centímetro do apartamento, em cada dor da minha alma: ela está lá. Bem viva. E nítida. Já pensei matá-la, esquartejá-la, mas senti que ela estaria sempre presente. Estivemos sempre juntos, por que haveria de ser diferente se ela morresse? Se ela morrer, eu morro junto; ela faz parte da minha existência, sempre fez. Coisas que a gente sabe, mas não consegue explicar. Sei é que o problema está em mim, e até meu último suspiro de vida eu conseguirei enxergá-la - o que, confesso, não deve passar de uns dez minutos daqui para adiante.

Sim, morrerei. Já vivi demais, e minha decisão é calma e sincera. Não tenho motivos para seguir vivo. É o fim. Nada mais clichê para artista perturbado.




XI.


É a minha renúncia: morro, e levo a menina junto comigo. Nós, nosso cárcere silencioso, nossa criminosidade cúmplice, nossa existência singular e dispensável. Peço, apenas, que o caixão seja azul. Leia com cuidado as metáforas sinestésicas que usei para definir o tom de azul e tente adaptá-los da maneira mais fiel possível, ainda que minhas descrições tenham sido literárias e abstratas. Por favor: é muito importante que meu caixão seja azul-aborto.


XII.

Estou escrevendo isso meio às pressas. Já não tenho disposição para me expressar em grande estilo, mas não posso deixar que a minha vida termine nos próximos minutos sem uma documentação literária do que me levou a esse fim. Dentro das gavetas dessa escrivaninha se encontram os meus poemas, os meus contos, as minhas teses, as cartas que eu nunca mandei e todo o tipo de escritos. Espero que eu seja lido e compreendido. Dentro de alguns minutos eu deixarei de existir, porque precisei. Comigo se vão as dores e a consciência; limpa ou suja. Mas espero que minha existência não desapareça completamente da História, e que eu fique vivo pelo menos em um ou dois leitores dessa narrativa. Leia-me: escreva-me.


XIII.

Lembre-se sempre que eu fui o único a ver a menina, minha doce e faminta menina, minha transparente e silenciosa menina. Ela não precisou de fato existir para fazer diferença no mundo. Ela me influenciou, existindo fisicamente ou não. E assim também quero proceder: permita-me que eu seja a sua menina azulada, o seu aborto fantasmagórico. Quero mostrar-lhe o azul. Decifra-me, ou:


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I'm your lover, I'm your zero - I'm the face in your dreams of glass.