segunda-feira, 21 de março de 2011

sorriso inesperado

Certo dia, na espera infindável pelo gerente do banco, uma pequena garotinha me chamou a atenção. Devia ter por volta de dois anos de idade e sorria da maneira mais genuína que um sorriso poderia se construir perante o mundo. Corria de um lado para o outro no meio dos adultos e circulava a fileira de cadeiras onde eu estava sentado, repetindo a mesma trajetória com um entusiasmo fora do comum. Fui tocado pela sua alegria, que gerava também em mim o mais belo dos sorrisos que eu poderia conceber: aquele gratuito, despido de exigências e pressupostos complexos. A alegria sem sentido é uma coisa que me fascina. Quis ser também uma criança como ela, e pensei no quão delicioso seria se todos tentássemos extrair o que há de bom à nossa volta e a partir disso tentar viver um pouco melhor. Certa está ela, a garotinha correndo em círculos dentro do banco. Ela ainda não era arte; era apenas vida, em seu nível mais orgânico. É no sorriso dela que eu confiarei, pois sua felicidade faz as coisas valerem a pena. É dela que preciso lembrar.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Orbitrário

Cedo demais ou tarde demais? Você compreenderia se eu te dissesse que estou de mãos atadas e que já perdi todos os meus movimentos intrínsecos? Eu giro, apenas porque obedeço aos nós inventados. Meu andar é regido por uma ânsia acorrentada à dor do momento seguinte. Sou a automatização do suplício. Estou preso a meu tempo, borbulhando e multiplicando o cordão umbilical que nunca foi cortado. Giro estupidamente no mesmo sentido desde que você soprou a vida no meu rosto, dizendo que eu não poderia jamais apodrecer e compondo minha gênesis com aqueles dedos que me exilaram de mim mesmo. Naquele tempo de fato eu jamais apodreceria, pois acreditei no que você disse como uma verdade astronômica maior. Acreditei que dentro de mim as engrenagens rodavam, colidiam, copulavam insaciavelmente no esforço de manutenção da espécie. Só me restava a espera, pois apesar da aparente infertilidade eu aprendi a crer que meu corpo floresceria com a violência da mais carnívora das plantas. E que, assim, suas mãos iam me colher por todos os lados, inclusive naquela lama a qual você se atreveu a manipular.

As ilusões brotaram pelos meus poros mas não fui ensinado a com elas lidar, construtiva ou destrutivamente. Por isso estou aqui circundando o mesmo espaço há tantos anos. Estou profundamente esgotado de tudo. Não suporto mais tanta síntese, opinião, crítica, revolta, análise, leitura, explicação, teoria, punheta. E eu não paro. A eletricidade nunca se dissipa para o espaço exterior. Não obedeço mais a meus próprios instintos, caminhando como a marionete da grande estrela que me condena, anterior e posterior a mim. O invisível é uma mentira e o pressuposto da minha realidade é a própria invenção: sou uma semente de arte carbonizada em meio aos desertos do entretenimento. Meus galhos estão secos e, no entanto, mais vivos do que nunca. Onde está o oásis? Porque tenho sede de algo que não seja composto da mesma matéria inerte que diferencia meu corpo de uma natureza morta. E ainda desejo florescer como outrora me fiz crer que poderia.

Minha vida é a espera pelo próximo passo, invariavelmente igual ao anterior. A velocidade com que me movo é fixa há milhões de anos. Essa é a grande verdade e, consequentemente, a grande mentira. Você consegue ouvir o eco dos meus gritos no abismo que existe entre nós? Trajetória. O combustível se recicla nos movimentos internos da natureza. Cordões umbilicais gozam, sangram, brilham, explodem, mutilam, mentem, mas sempre se petrificam quando ultrapassam o limite da pele. Não sei o que sou além, nem aquém, da ficção idealizada por um ventre que concebeu um feto de puro egoísmo literário. Então engatinho, me arrasto, procurando por uma trégua silenciosa nos meus mecanismos interiores, no meu núcleo gravitacional de vida hipotética.

Tento me esquivar e encontrar no céu florido alguns espinhos de rosas que furem minha carne envelhecida. Preciso sentir alguma coisa além do tempo passando e eu fincando minhas raízes numa terra que nunca será completamente minha. Eu quero o sangue. Eu quero o que é líquido, o dilúvio de um corpo inteiro. Necessito a destruição que eu nunca efetuarei. Eu construo o mesmo edifício oblíquo desde sempre, cuja estrutura está perdida na pausa entre um passo e outro. Minha fala não cria, a língua não é suficiente para inventar outras verdades. A boca que poderia muito dizer apenas engole, enfiando tudo goela abaixo e me rasgando com a força de um predador desesperado para digerir. Mas o sangue que sai de minhas feridas já nasce cristalizado. Perdi os meus líquidos. Sinto no estômago o gosto das pílulas amargas que já degustei, toda a sujeira que já me atrevi a lamber de chãos anônimos, todo o peso do seu sopro-alfa de essência temporal. Sinto coladas nas minhas retinas todas as imagens cruéis que me violentaram os olhos vermelhos de cansaço. Revivo eternamente a ferida aberta das minhas rotações e mastigo toda a imundície, corroendo internamente meus órgãos mas não parando nunca. Sou uma planta cujo aborto foi mal-sucedido, e cujas folhas ainda tentam alcançar o céu apesar de toda a paralisia do caule.

Tenho tempo demais, preciso parar. Mentir uma outra direção. Girar no sentido contrário, romper com as órbitas. Mas sou apenas uma tentativa de epopeia perdida no abismo microscópico de um movimento celular, insistindo em uma mentira que nunca será contada, esquartejando a palavra que não ultrapassará jamais as grades da minha garganta. Estou perdido na intermitência entre os meus passos cansados, nos espinhos que nunca chegaram a perfurar a carnes dos meus pés. Como apodrecer, se a minha sentença foi justamente a eternidade da mais viva árvore? Como fugir da órbita, se os astros continuam sendo os mesmos, dia após dia, segundo após segundo, amor após amor? Sou meio tarde demais, inevitavelmente cedo demais.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Grito do poeta M.G. enquanto silêncio

As paredes desse lugar me dizem coisas que não posso traduzir. Tudo o que vejo são imagens que foram sempre as mesmas e assim continuaráo sendo. Elas me remetiam a um futuro, a um passado, a um presente. Mas não me remetem mais a nada, por mais que eu mude os pontos-de-vista. São paredes frias, ou talvez quentes, não tenho mais com o que comparar. As sensações opostas, os sentimentos contrários estão todos invadindo uns aos outros em um coito destruidor dos contrastes. Sinto-me chicoteado pela falta de oxigênio, e acorrentado a esses olhos que, secos de tanto verem a mesma perspectiva, já não precisam de luz para distinguir o que há e o que não há. Não posso sair daqui, pois não tenho mais chaves. Jogaram fora, ou mesmo eu joguei fora, aquele eu perdido que sorri enforcando-se com minha chave no pescoço. O passado é uma breve hipótese que mesmo as mais esforçadas lágrimas não poderiam resgatar. Os signos vão sendo ao pouco abortados, e me sinto fraco, inútil, lixo. E, pela inutilização dos meus próprios membros, vou perdendo meu corpo dentro de mim mesmo. Levo minhas mãos ao pescoço e não sinto mais garganta. O meu grito silenciado acena com um distante adeus, em um sóbrio lamento de alguém que simplesmente não pôde. Há transitividade no poder, e estou preso ao reverso, que é intransitivo. Sou o membro decepado que não mais se mexeu, a inarticulação que preenche a impotência. Espero, espero aqui dentro, mas a espera já é também intransitiva, e não há mais o reverso da moeda. Dias, semanas, meses ou anos, já não distingo o instante que passou e o que está por fim. Minha pele borbulha, e a matéria de que sou composto começa a se fundir a substância da qual é feito este velho quarto. Começo a criar raízes, e numa dança insana me contorço e vou fincando fundo o meu corpo nesta terra que não é terra. O chão dilacerado penetra as minhas entranhas invadindo minhas células como a água necessária para a sobrevivência. Derreto, absorvo, estremeço, endureço, desapareço. Lentamente me transformo nestas paredes sujas, nesse cubículo manchado com meus próprios miolos, e tudo que vejo também já sou eu, e não há para onde estendermos a metamorfose. Deixo de ser, agora não mais sou, agora eu somos, agora eu é, agora eu, tu, eles vemos uns cacos meus espalhados pelo chão, pelo teto; vê agora que não mais vejo, que vejo o que sou visto e agora eu derreto no fogo gelado do único mundo que há, e me há a ele.

(uma interrupção torna-se necessária.
o poeta M.G. incomunicou-se,
já que este é o natural comportamento
das mais profundas agonias do ser.
mantenho a assinatura,
pois ainda que sejam guilhotinadas em nossas gargantas
as vozes que podem vir ao mundo,
existe um direito inalienável ao grito que se desejou,
silencioso ou não.)

M.G.

domingo, 23 de janeiro de 2011

life is a mistery

Hoje caminhei até a farmácia. É um pouco longe da minha casa, mas gosto de caminhar, ainda que debaixo de sol. No caminho senti uma vontade imensa de fumar. Há meses estou nessas de não-sei-se-paro, será-que-devia-mesmo, portanto tenho fumado apenas em situações sociais, geralmente noturnas, acompanhado de outros fumantes. Pois fiquei, durante minha caminhada, hesitando mentalmente entre o anjinho e o diabinho, ambos a me confundir com suas recompensas e punições.

Comprei o remédio que precisava. O calor era de matar, um sol escaldaante que retirava de minha pele toda a água que me mantinha vivo. Nada mais natural que, tendo concluído minha tarefa, eu entrasse na casa de sucos mais próxima e pedisse um suco de açaí bem gelado. Foi o que fiz. E, na espera pelo preparo do meu refresco, ainda com os pensamentos oscilantes, ouço pessoas lamentando a doença, ou talvez a morte de uma amiga próxima. Motivo? Câncer de pulmão.

Fiquei meio assustado com a circunstância. Tentei pescar mais informações acerca do assunto, mas não consegui entender se a moça tinha morrido de vez ou não. De qualquer maneira, o cigarro era claramente o culpado por toda a situação, pontuando os discursos tal qual um rei de toda a desordem, sujeira e crueldade que existem nesse mundo. Preferi não julgar. Paguei minha conta e saí.

Não acredito em destino, em sinais espirituais ou coisa assim. Mas dentro da minha materialidade eu consigo apreender um pouco de intuição, que pra mim é naturalmente material e físico assim como todo o resto da tal da realidade. Claramente não se tratava de um sinal divino a me dizer “não fume!”, mas algo em mim organizava a coincidência, indagando silenciosamente ao meu corpo: “você ainda pretende fumar mesmo depois dessa?”

Andei, rumo à minha casa. O sol nunca estivera tão quente; meu corpo já havia absorvido por completo o açaí de minutos atrás. Passei em frente a Igreja Central e de súbito ocorreu-me um impulso de entrar e ficar lá dentro, em silêncio, pensando. Não sou religioso e esse impulso me é bastante corriqueiro. Confesso que gosto do ambiente silencioso, frio, impessoal e dolorido de uma Igreja. Imaginei então que aquele fosse um bom momento para entrar ali e desfrutar de uma de minhas experiências antropológicas preferidas, mas meus pés estavam desconectados de minhas intenções e não me permitiram o desvio do meu caminho original. Passei reto pela Igreja. No fundo, queria mesmo é ir pra casa e fugir terminantemente daquele sol.

E na cabeça, como sempre, a imaginação rolava solta, um pouco embriagada pelo sol escaldante: já pensou se Deus realmente existisse e tivesse me mandado sinais como esse do cigarro como esse desde sempre, e eu simplesmente ignorei? Ok, hipótese absurda, mas: imagina se a própria matéria que organiza a vida dá certas dicas que os nossos sentidos são capazes de compreender? Será que vou morrer cedo se continuar fumando? Por que na hora H eu amarelei e acabei não entrando na Igreja?

Minutos depois, esperando o semáforo fechar e cogitando hipóteses metafísicas para a explicação de um fenômeno divino, reconheço uma música tocando em um dos carros parados no sinal vermelho. Era Like a prayer, da Madonna, que proferia as seguintes sentenças naquele instante: “when you call my name, it’s like a little prayer… I’m down on my knees, I want to take you there.” Fiquei boquiaberto com aquilo. Cantei junto enquanto a música ainda era audível, depois atravessei a rua e segui meu caminho, rindo das coincidências deste dia maluco, das nicotinas ingeridas, dos deuses inexistentes, dos cânceres de terceiros, das igrejas que nunca entrei e das ousadas Madonnas que, ao transar com santos em pleno altar, me diziam: você precisa mesmo é de um cigarro, Samuel.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

baiano preguiçoso

Eu queria mesmo é ser um baiano preguiçoso. O das novelas, o dos ditados populares, o das redes sociais, o do senso comum de milhares de pessoas sem apreço nenhum pela vida. O baiano vagabundo que tanto falam por aí: tomara que ele exista. Ou que alguém realmente o invente. Eu gostaria de sê-lo, me tornar esse alvo dos preconceitos, inimigo do progresso, a antítese da boa moral. Um dissimulado baiano que não dá lucro aos que tem poder, e nem vende seu suor em troca do enriquecimento dos dignos senhores que infelizmente não são tão preguiçosos assim.

Mas vejam bem: só quero se for do tipo bem preguiçoso, que fica deitado em sua rede o dia inteiro, sustentado no ar pelas suas divindades tropicais. Que em meu corpo reine apenas o compromisso com a felicidade, com a pura alegria da vida que se renova por si mesma. E que em todo fim de tarde eu, baiano preguiçosíssimo e sem vergonha, admire com preguiça o fraco sol que o tronco do coqueiro rasga em dois. E que, nesse belo horizonte, eu reconheça internamente que o gozo da vida não é uma recompensa pelo trabalho prestado; é um presente da natureza.

Sou:

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São Paulo, SP, Brazil
I'm your lover, I'm your zero - I'm the face in your dreams of glass.