sexta-feira, 23 de abril de 2010

Minha nova religião

Nunca acreditei verdadeiramente na figura divina como ela é representada pela maioria das crenças. Um velho sábio criador de todas as coisas: de quem tudo veio, para quem tudo irá, quem tudo pode e quem em todos os lugares está. Durante os últimos anos, aqueles da juventude, com suas naturais porém árduas definições de caráter, de gosto e de objetivos, neguei sempre que pude a figura de Deus, embrenhando-me numa espécie de ateísmo que a mim pareceu bem justo – seja no sentido racional, no químico, físico ou geográfico.

Mas apesar de não acreditar nessa concepção de Deus, percebi que acredito, sim, num impulso criador de tudo que existe agora. Não me parece cabível um universo infinito que sempre existiu; e, considerando impossível a possibilidade do universo sempre ter existido, automaticamente creio na hipótese de que ele teve um começo. Se ele teve um começo, acredito que algo tenha acontecido para impulsionar a sua existência.

Sempre chamei esse impulso de Big Bang, obviamente. O Big Bang, até onde eu sei, é um evento, mas ele não pode ter acontecido sozinho. Nada pode acontecer, segundo o que acredito em se falando de existência, sem estar submetido ao tempo, a uma causa anterior. E a infinita regressão de causas anteriores termina no começo do que acredito ser o universo. Esse começo é um tipo de energia, afinal tudo é energia. Alguns chamam de Deus – pra mim não é, é apenas uma energia. É apenas matéria.

Não acredito nem que essa “força” criadora conviva conosco. Não consigo senti-la. Vejo tudo no mundo e no universo como uma sucessão infinita de reações a essa ação inicial, como se tudo que existe fosse apenas um reflexo. Como se a eternidade que concebemos estivesse dentro de uma eternidade diferente: aquela que existe entre um milésimo de segundo e outro milésimo de segundo.

Acredito que somos consequência da explosão dessa força inicial. O Big Bang foi a explosão de um Deus – porque não achei palavra melhor –, que ao criar todo o universo que existe acabou se destruindo também. Não acho que tenha sido um Deus racional e essa tivesse sido a intenção dele, o que basta é: esse Deus está morto. Ele existiu e não existe mais.

Ou seja: somos pedacinhos cósmicos de um Deus esquartejado

Isso não é lindo?

Sei que minha teoria é cheia de achismos e não faz sentido algum. Mas, num mundo de pseudo-crenças alternativas e sincretismos no qual as pessoas dizem o que querem, acreditam convenientemente no que bem entendem e têm suas próprias concepções absurdas de Deus, eu também mereço ter a minha teoria!



terça-feira, 20 de abril de 2010

Kill your idols

(...) de fora da própria literatura, a linguística acaba de fornecer à destruição do Autor um instrumento analítico precioso, ao mostrar que a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição, sem precisar ser preenchido pela pessoa dos interlocutores; linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, tal como eu não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um «sujeito», não uma «pessoa» (...)

(...) assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. É por isso que é irrisório ouvir condenar a nova escrita em nome de um humanismo que se faz hipocritamente passar por campeio dos direitos do leitor. O leitor, a critica clássica nunca dele se ocupou; para ela, não há na literatura qualquer outro homem para além daquele que escreve. (...)

(...) sabemos que, para devolver à escrita o seu dever, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.

BARTHES, Roland. “A morte do autor”.

Peço desculpas publicamente por ter ignorado nosso amigo Roland Barthes por tanto tempo, ainda que esse pedido não seja uma vergonha cega à frente de algo que de repente percebi como verdade absoluta, ainda que esse pedido não tenha um destinatário preciso (e enunciatário, teria?), ainda que eu não conheça tão bem assim os motivos pelos quais peço desculpas.

Por vezes, cometi o defeito lamentável de me considerar mais autor do que, de fato, um escritor. Dotado do maior egocentrismo que posso compreender – e grato a esse mesmo egocentrismo, que, caso ausente de mim, não me possibilitaria chegar a essa conclusão –, encarava meu suposto ofício como um dom, como um poder. Como se eu fosse um Deus criando a realidade, e não um manipulador desse gigante mosaico de recortes lingüísticos da realidade que é a nossa linguagem. Como se a obra existisse dentro de mim. Como se as obras não precisassem de um olhar externo para serem concretizadas como obra.

Entendi repentinamente o que sinto quando meus escritos ficam entalados dentro de mim – e, em consequência, compreendi também o alívio que sinto quando consigo me expressar em palavras. Tenho dentro de mim diversas escritas que só podem se materializar se eu de fato as escrever: não adianta mais seguir vendo-me como um autor onipotente que, no entanto, nada produz. Esse autor não existe. Como pude ter sido tão imbecil?

Talvez seja euforia juvenil, mas quero declarar a morte desse autor. Junto com Barthes. Junto comigo mesmo. Junto a um Eu completamente ofuscado por ilusões românticas que Hegel explicaria bem – mas Hegel entra pra lista de assuntos pra outra hora.

Declaro suicídio. Começa a partir de hoje. 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Gelado domingo quente

Uns amigos me convidaram para ver a exposição do Andy Warhol nesse último fim de semana. Adoro a arte do cara e obviamente aceitei o convite, aproveitando-o também como uma oportunidade de dar um passeio pela cidade na qual eu moro e da qual eu tenho visto apenas aspectos como a poluição sonora, visual e material. Poderia ser uma ótima reconciliação minha com São Paulo e nosso amor que estava em hiatus nos últimos meses. Enfim, amor ou não, reconciliação ou não, personificação clichê ou não, é fato que eu precisava sair da bolha em que tenho me encontrado nos últimos tempos – pela qual desloco-me apenas do trabalho para a faculdade e da faculdade para casa – e dar uma voltinha pela metrópole.

Acabamos não indo ao Andy, pois saímos tarde demais de casa e a exposição fechava às 17h. Fomos então para a Avenida Paulista, afinal já tínhamos nos arrumado para sair e estávamos no meio do caminho quando descobrimos que a exposição fechava às 17h – voltar para casa seria um fracasso miserável. Chegando à avenida, percebi com “olhos embotados de cimento e lágrima” o quanto aquilo tudo fazia falta para mim. Falta da grandeza da avenida, de sentir toda aquela globalização asfaltada, a atmosfera entupida de riquezas e criatividade arquitetônica.

Era um domingo à noite e fazia uns 15 °C, então o clima era de passeio, cafés e roupas elegantes de inverno. Pela calçada, os transeuntes dominicais andando de cá pra lá quase ofuscavam a visão dos automóveis. Estes, frenéticos como sempre, retalhavam o ar com suas luzes, fumaças e barulhos em meio ao cinza-noite da avenida, acelerando sem piedade enquanto os pedestres aguardavam, condescendentes, o sinalzinho verde para poderem atravessar a rua.

Em frente ao Center 3, dois artistas de rua se apresentavam, atraindo e embasbacando uma multidão cuja primeira reação seria a de autodefesa desconfiada. Diferente do que os outros aparentam, adoro arte de rua. Sinto-me filosoficamente agredido por seus artistas. Uma agressão dolorida e prazerosa, como se eles atirassem em mim com munições de ilusões, esperanças, utopias e assumissem belamente o peso e a culpa de ser gauche na vida – dos quais sou apenas uma tentativa inútil e atordoada de teórico, pensativo demais para colocar ideologias em prática.

Enfim, a apresentação deles foi um espetáculo à parte. Um dos caras, certamente dono do diafragma mais desenvolvido dos nossos tempos, tocava uma espécie de berrante gigantesco em um ritmo profano e misterioso, enquanto o outro brincava com bolas de cristal, equilibrando-as ao longo do corpo de uma maneira quase sobrenatural e fazendo parecer que as bolas flutuavam magicamente. Um ilusionismo cênico que, misturado à música e à concentração visível no rosto e no corpo do moço, dava à cena algum tom obscuro e transcendental de sexualidade. Aquilo me assustava. Fascinava. Excitava.

Enfim, no Center 3, banalidades agradáveis: conversas com amigos, uma roasted potato e um chá preto awake no Starbucks. Este me deixou especialmente acordado por algumas horas, contrariando minhas expectativas (“sou forte para cafeína, imagina que um chazinho vai me deixar acordado!”) e fazendo com que meu interesse por chás, há muito adormecido, voltasse à tona em um só ímpeto. Anyway, meu interesse por chás e o vício recém-adquiridos por eles é assunto para outra hora.

Depois fomos à Livraria Cultura e por fim paramos para tomar uma cerveja no Charme da Paulista. Em frente ao Charme, um cara tocava violão e cantava, bem alto, músicas do Capital Inicial, Legião Urbana e uns sertanejos que me lembro de ter ouvido eventualmente durante os dezoito anos que vivi no interior. Essa coisa de barzinho-e-música-ao-vivo é coisa que talvez me incomodasse em momentos normais, mas não me incomodou naquele. Nem um pouco. Tudo estava interessante, repaginado, e dentro de mim eu revisitava lugares velhos e os reformava de maneira espetacular. O frio aumentava ao passo que minha alma esquentava – tudo estava confortável, gostoso, prazeroso. Mais e mais.

Não é a primeira vez que relato sentimentos bons ligados à Avenida Paulista, né? Devo mesmo ter alguma relação com esse lugar, talvez por ter sido o primeiro lugar em São Paulo que eu pisei quando viajei pra cá pela primeira vez, completamente sozinho. Lembro que era uma manhã (7h, ou algo assim) chuvosa e gelada – mas isso também é assunto pra outra hora.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Onirismo

Quando criança, a primeira inclinação profissional que me ocorreu foi a de me tornar jornalista um dia. Por incrível que pareça, essa vontade surgiu das noites em família nas quais assistíamos ao Jornal Nacional, esperando pela novela que viria logo depois. Admirava, com a ingenuidade de uma criança de seis anos, a expressão austera e imparcial de William Bonner ao pronunciar seu "boa noite" para o país todo. Mas o que eu gostava mais, de fato, eram as roupas que o jornalista usava - ternos bonitos, pura expressão masculina de elegância.

Minha mãe achava graça e alimentava meus sonhos. Quando estávamos passeando no shopping e passávamos por alguma vitrine de roupas sociais, por exemplo, eu e ela conversávamos sobre qual terno eu usaria quando fosse apresentador do telejornal. Apesar de ter consciência de que essa "brincadeirinha de ser jornalista" era um sonho que poderia não ser levado adiante, eu levava a brincadeira a sério e analisava todos os ternos da vitrine com o pouco de senso estético que possuía, até escolher um que fosse mais adequado, mais elegante. De preferência melhor que o do William Bonner, para que eu fosse mais bonito, mais famoso, mais importante ainda. Afinal, se eu queria substituir William Bonner na Rede Globo, precisaria escolher uma roupa que me deixasse mais apresentável. E essa escolha não podia ser deixada para depois - o sonho é o agora.

Outra coisa que me fez almejar a profissão foi Clark Kent, o Superhomem. Era natural que uma criança nos anos 90 o admirasse e a ele quisesse ser igual; seja pelos poderes, pela fama ou até pela bela Louis Lane. Eu, particularmente, queria ser Clark Kent porque ele era jornalista. Claro que não me importaria em ter seus superpoderes - aliás, a capacidade de sair voando por aí é uma coisa que sempre me fascinou bastante -, mas o que eu queria mesmo era sua profissão: aquele dia a dia corrido dentro da redação, matérias sendo feitas, milhares de computadores. Era um mundo mágico para mim.

Às vezes eu pegava uma caixa de sapato, abria e fingia que era meu notebook. No meu imaginário, eu estava lá, dentro da redação, digitando na velocidade exorbitante com a qual Clark Kent digitava graças aos seus poderes. Ele era uma figura masculina forte, inteligente e invejável, com seus óculos enormes e seu olhar clínico. Lembro-me de quando fui ao oftalmologista e ele disse que eu teria que usar óculos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida - usar óculos era um dos meus sonhos, afinal, intelectuais e jornalistas geralmente usam. Clark Kent usava. Saí do consultório radiante em direção à ótica, mal esperando o dia em que poderia colocar meus óculos no rosto. Não me importava com um possível bullying - apelidos como Quatro-Olhos, por exemplo -, porque dentro de mim estava tudo bem, tudo decididamente no seu lugar. E eu seria um belo homem: grande, sábio, inteligente, culto, bonito, admirado.

Muitas outras figuras, fictícias ou não, influenciaram no meu desejo de me tornar um jornalista; diversos personagens de livros, novelas e filmes. Não consigo nomeá-los porque sinceramente não me lembro. Pois, apesar de terem influenciado, meu pensamento já estava maduro e pensava na profissão de maneira cada vez mais racional, mais objetivada, sem a fantasia infantil do terno de William Bonner e os óculos de Clark Kent. Consigo lembrar, com um pouco mais clareza, de professores de redação que me incentivavam a seguir esse caminho: "Samuel, você escreve muito bem!", "Samuel, você já pensou em ser jornalista?", "Samuel, só não te dou um 11 porque a nota máxima é 10." Tudo isso me deixava muito feliz, mas às vezes preocupado comigo mesmo e com meu futuro.

Certa vez, na sétima série, uma professora de redação me deu uma bronca. Ela me perguntou o que eu queria ser no futuro e eu disse sem pensar nem por dois segundos: "jornalista". Então ela me disse que eu ia acabar desperdiçando meu próprio sonho, pois apesar de extremamente talentoso, eu era muito preguiçoso, muito vagabundo e relapso nos estudos. E que, se eu continuasse dessa maneira, ia acabar me dando mal.

Aquelas palavras me fizeram refletir por bastante tempo. Tinha perfeita consciência de que jogava fora todos os meus talentos, voluntariamente ou não - aliás, isso é uma coisa que sempre fiz. Rasgo os meus desenhos, jogo meus escritos no lixo, abandono cursos que poderiam me ensinar um monte de coisas, boicoto minhas próprias possibilidades de realização pessoal. Tentei me esforçar um pouco mais a partir de então, mas tenho que ser sincero: não me importava muito com o que iria acontecer. Meu temperamento se baseava no desencanamento quanto ao futuro. O sonho é muito mais prazeroso, a fantasia é muito mais inspiradora, o imaginário é muito mais fértil que perspectivas racionais acerca do futuro. Isso, para mim, é ser criança: um mundo gigante de sensações e pensamentos pela frente, livre de pressupostos lógicos e racionais.

O tempo passou e não virei jornalista. Adquiri outros conhecimentos, li outros livros, tive outras vontades, desenvolvi outras ideias, prestei outros vestibulares, cresci. Não realizei meu sonho, mas de que importa? O sonho é simplesmente o sonho, e não a realização do sonho. "Sonhos sonhos são", como diz o título da canção do Buarque de Hollanda. Você não precisa manter, a respeito dos seus sonhos, uma expectativa que possa te levar à frustração no futuro. Uma das coisas mais tristes que um ser humano pode fazer é confundir sonho com objetivo. Minha professora estava certa quanto ao possível desperdício da minha capacidade, mas ela estava terrivelmente equivocada no que diz respeito ao desperdício do sonho.

Penso que, mesmo com o peso da maturidade e suas consequentes responsabilidades, nós não deveríamos parar de sonhar. Mantenhamos um pouco da criança em nós. Tenhamos de vez em quando nossas ideias absurdas, surreais - e por que não reais?

Sou:

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São Paulo, SP, Brazil
I'm your lover, I'm your zero - I'm the face in your dreams of glass.